Conexão Lusófona

Tudo o que precisa saber sobre o incêndio no Museu Nacional brasileiro

O fogo consumiu praticamente a totalidade do edifício histórico que, em Junho deste ano, celebrou 200 anos de existência.

2 de Setembro de 2018, um dia que a História brasileira jamais esquecerá.

 

Foi no final da tarde de Domingo, às 19.30h (23.30h em Portugal Continental) que um incêndio épico consumiu praticamente a totalidade do Museu Nacional, situado na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro. Não há registo de vítimas mortais mas os danos materiais são inimagináveis.

 

Fundado em Junho de 1818 pelo rei D. João VI no edifício do Palácio de São Cristóvão (habitado, à época, pela família imperial portuguesa), herdando o espólio da Real Academia Militar, o Museu Nacional do Rio de Janeiro é considerado unanimemente a mais antiga e importante instituição museológica, antropológica e etnológica de toda a América Latina. Influenciado pelo gosto do coleccionismo e pelo desenvolvimento do saber científico e arqueológico, o objectivo dos reis portugueses baseava-se em «propagar o conhecimento e o estudo das ciências naturais em terras brasileiras».

 

Gerido desde 1946 pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), a dimensão do acervo agora tragicamente engolido pela fúria das chamas é colossal. Entre os seus 20 milhões de artefactos (guardados numa área superior a 11.000 m2), autênticos tesouros de valor incalculável, verdadeiras relíquias da história indígena e afro-brasileira, perfilavam-se peças absolutamente únicas: a maior colecção de meteoritos do Brasil, nomeadamente o meteorito de Bendegó, descoberto em 1784 na região da Bahia e pesando aproximadamente 5,36 toneladas; o crânio de «Luzia», o mais antigo fóssil das Américas, encontrado pela arqueóloga francesa Anette Laming-Emperaire em Lagoa Santa, Minas Gerais, em 1974, cuja idade varia entre 12,5 e 13 mil anos; a colecção de arte egípcia adquirida em 1826 por D. Pedro II, constituída por um conjunto de sarcófagos e por uma múmia rara em excelente estado de conservação; milhares de objectos da Antiguidade greco-romana; o diário manuscrito da imperatriz Leopoldina de Áustria; e ainda um fabuloso esqueleto completo de Baleia Jubarte, medindo 17 metros de comprimento, localizado em Paraty (Rio de Janeiro). No entanto, ainda é difícil afirmar o concreto grau de deterioração a que ficaram expostos os principais artefactos do acervo do Museu brasileiro.

 

O combate às chamas foi duro e intenso, prolongando-se exaustivamente pela madrugada (o fogo durou quase 6 horas). O comandante-geral dos bombeiros, Roberto Robadey, mobilizou equipas de 20 quartéis do Rio de Janeiro, que se confrontaram com um grave falta de água nas bocas de incêndio disponíveis no interior do Museu Nacional, tendo por isso que recorrer ao auxílio de camiões cisterna. O mesmo comandante Roberto Robadey referiu-se ainda à facilidade de propagação das chamas devido ao facto de algumas peças estarem preservadas em álcool. O risco de desabamento, todavia, é reduzido uma vez que a estrutura do Museu Nacional se reveste de paredes grossas.

 

À falta de meios técnicos e logísticos acrescentam-se as dificuldades financeiras e o crescente desinvestimento público e político no que respeita à conservação do património cultural brasileiro. A UFRJ, que tutela a gestão do Museu Nacional, atravessa sérios problemas económicos. Em 2014, a Universidade disponibilizava apenas parcialmente a esta instituição cultural uma verba avaliada em R$520 mil (sensivelmente 110 mil euros) destinada à preservação do seu espaço museológico. Em 2015 o Museu Nacional do Rio de Janeiro chegou mesmo a encerrar portas durante 10 dias por causa da convocação de uma greve de funcionários de limpeza que reclamavam salários em atraso. Os alunos da Pós-Graduação em Antropologia Social, ironizando a crónica escassez de verbas investidas no Museu, criaram uma série de memes (imagens ou vídeos partilhados de forma viral nas redes sociais) mostrando um grupo de fósseis à espera de financiamento.

 

O vice-director do Museu Nacional, Luiz Duarte, acusa a classe política brasileira de inépcia, negligência e desinteresse pela gestão responsável dos bens culturais do país. Revoltado com esta catástrofe de contornos nacionais, Luiz Duarte lamentou o tímido apoio por parte do governo federal e, em declarações à TV Globo, revelou a proposta de um programa que pretendia justamente reabilitar o edifício bicentenário:

 

«Recentemente finalizámos um acordo com o BNDES [banco público associado ao Governo] para um investimento maciço, para que pudéssemos finalmente restaurar o palácio e, ironicamente, planeámos a instalação de um sistema de prevenção de incêndios novo.”

 

O Museu Nacional, que no passado dia 6 de Junho assinalou os seus 200 anos de existência, não teve, segundo Luiz Duarte, nenhum ministro a representar o Estado no contexto das cerimónias comemorativas. «É uma pequena mostra do descaso», desabafou, confessando ainda que o seu sentimento apela a «uma imensa raiva por tudo o que lutamos e que foi perdido na vala comum.» A ausência de consciência da classe política, para o vice-director do Museu Nacional do Rio de Janeiro, é a principal responsável pela transformação deste arquivo e acervo valiosíssimos em e fumo.

 

Da parte do governo brasileiro, o Ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, indicou que um contrato de revitalização assinado em Junho, traduzido num financiamento na ordem dos R$ 21,7 milhões (cerca de 4,5 milhões de euros), visava restaurar o edifício histórico bem como garantir uma maior segurança das suas colecções. O tempo necessário para a concretização do projecto, a par dos sucessivos cortes orçamentais na área da cultura, o atraso nos pagamentos e a degradação galopante das instalações do Museu Nacional ditaram as fatais proporções que este gigantesco incêndio atingiu no coração da histórica cultura brasileira.

 

Alinhando nas críticas ao executivo liderado por Michel Temer, que disse ser este «um dia trágico para a museologia do nosso país», alcançando consequências «incalculáveis» para o Brasil, a directora do Museu Nacional, Claudia Rodrigues Carvalho, e o coordenador do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, Carlos Vainer, publicaram um comunicado oficial no sítio on-line do Museu:

 

«Naquela que deveria ser a ‘Pátria Educadora’, conforme promessa da Presidente Dilma Rousseff em sua posse, a UFRJ não tem recebido os recursos que lhe cabem, inclusive para pagamento das empresas que prestam serviço de limpeza e portaria ao Museu Nacional. (…) Impotente diante do que parece ser uma total insensibilidade da chamada ‘política de austeridade’ diante das necessidades básicas de nossa Universidade e, neste caso, do Museu Nacional, só nos resta esclarecer a comunidade universitária e a sociedade sobre a realidade que explica a suspensão das visitas, e vir a público para solicitar o apoio da sociedade e buscar sensibilizar as autoridades governamentais.»

 

A Universidade Federal do Rio de Janeiro, que tem três meses de salários em atraso para com as empresas que asseguram a limpeza e manutenção do espaço do Museu, recebe nas suas exposições, no período de férias, perto de 5000 mil pessoas nos fins-de-semana e cerca de 3000 visitantes nos dias de semana (segunda a sexta), arrecadando uma receita aproximada de R$ 30.000 por semana em igual período. Para Claudia Rodrigues Carvalho, o prejuízo acarretado pela suspensão das visitas devido à consequente falta de verbas é grave mas, não obstante, o principal prejudicado, na perspectiva da directora do Museu Nacional, é o próprio património cultural da cidade. O Ministério da Educação brasileiro confirmou efectivamente um atraso no desbloqueamento das verbas que, entretanto, já terá sido regularizado.

 

Quem comentou com maior mágoa esta tristeza nacional foi Marina Silva, candidata da REDE à presidência da República, divulgando as seguintes palavras na sua conta de Facebook:

 

«A catástrofe que ainda atinge o Museu Nacional neste domingo equivale a uma lobotomia na memória brasileira. O acervo da Quinta da Boa Vista contém objetos que ajudaram a definir a identidade nacional, e que agora estão virando cinza. Infelizmente, dado o estado de penúria financeira da UFRJ e das demais universidades públicas nos últimos três anos, esta era uma tragédia anunciada.»

 

Mais simbólico se torna este testemunho de Marina Silva se atendermos à conclusão, publicada hoje na revista Piauí a propósito deste grande incêndio que destruiu o Museu Nacional do Rio de Janeiro, que, entre os 13 programas presidenciais no Brasil, só os projectos de dois partidos consagram medidas específicas relativamente à protecção e conservação dos museus: a própria REDE, de Marina Silva, que propõe «oferecer condições de funcionamento a museus, arquivos e bibliotecas»; e o PT, representado por Fernando Haddad (Lula está impedido de concorrer às presidenciais por decreto do Tribunal Superior Eleitoral), que preconiza «a proteção e promoção do patrimônio cultural e de fortalecimento da política nacional de museus.»

 

O trágico incêndio que assolou o Museu Nacional não é fruto do acaso. Resulta antes de sucessivos anos de desinteresse e desvalorização do poder político face ao património nacional, de consecutivos cortes orçamentais na área cultural e da falta de meios para conservar as colecções preservadas nos maiores museus brasileiros. Investigadores, cientistas e historiadores alertaram inúmeras vezes no passado que o risco de degradação das estruturas do espaço museológico era sério. É uma catástrofe que nasce da impotência, do desinvestimento e da ignorância. Um ciclo termina e uma nova vida começa. Esta é a imagem real e metafórica de um país à espera de reinventar o seu destino.

 

PS: O autor deste artigo obedece às regras do antigo acordo ortográfico

 

 

Exit mobile version