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A incrível história de Maria Bonita: a lenda do cangaço brasileiro

"Retratos do cangaço" - Imagem: Wikimedia Foundation

Antes de mergulharmos nos detalhes desta narrativa, convém explicar aos que não estão familiarizados com o termo cangaço o que este significa: é o nome dado ao movimento armado de nómadas (nômades, em português do Brasil) nordestinos, que atingiu o seu auge entre o final do século XIX e o início do século XX. O cangaço marcou a história do sertão brasileiro, sendo reconhecido pela intensidade dos crimes violentos e cruéis – desencadeados principalmente por sentimentos de vingança, revolta e disputa de terras.

 

A figura típica deste movimento era apelidada de cangaceiro: homem do sertão, adornado com roupas de couro e chapéu de abas largas, apetrechado com punhais e armas de fogo pendurados na cintura. Originalmente, o termo cangaço nasceu da palavra canga: peça de madeira ou de tecido, utilizada nos animais de carga, para transportar utensílios. Deste modo, o termo cangaceiro faz alusão à canga, devido à grande quantidade de objetos e armas que estas figuras carregavam no corpo.

 

“Retratos do cangaço” – Imagem: Wikimedia Commons

Os cangaceiros eram considerados os bandidos mais perigosos do sertão brasileiro. Chegaram a existir bandos muito numerosos, formados por jagunços, empregados de latifúndios, capangas e pistoleiros. Todos tinham a mesma finalidade: espalhar o terror e o medo por onde passassem, fazendo frente à polícia estadual e contrariando o poder das elites.

 

Durante os primeiros anos da República Oligárquica – quando o poder político passou a ser controlado pelas oligarquias rurais -, a força do cangaço ganhou um novo curso e cresceu exponencialmente. Os bandos de cangaceiros lutavam contra o monopólio dos fazendeiros mais ricos, pilhando e angariando bens, dinheiro e terras. Até hoje, são figuras que levantam alguma polémica: se parte da sociedade as relembra como vis e criminosas, a outra adjetiva-as de heroicas e corajosas. A verdade é que as histórias do cangaço continuam a ser perpetuadas pelo imaginário popular brasileiro. Estas têm sido representadas pela arte: foram adaptadas para cinema, cantadas em músicas e memorizadas no universo das letras. Na Literatura de Cordel – típica do nordeste – o tema mais retratado pelas narrativas são a vida e a luta no cangaço.

 

A lendária rainha do cangaço

 

Maria Gomes de Oliveira, popularmente conhecida como Maria Bonita, nasceu numa pequena fazenda no município da Glória – atual cidade de Paulo Afonso -, no estado da Bahia (Brasil), em 1911. Era filha de dois pequenos lavradores, com poucas posses, e tinha 10 irmãos. Nada no seu currículo biográfico dava a entender que um dia se tornaria numa das figuras mais icónicas do cangaço e do folclore nordestinos.

 

A sina de Maria parecia traçada. Apenas com 15 anos, os pais obrigaram-na a casar com um sapateiro da Malhada da Caiçara – um povoado das redondezas da Bahia, no qual se edificou uma espécie de casa-museu que ajuda a perpetuar a história de Maria Bonita. José Miguel da Silva, mais conhecido por Zé de Neném, era o nome do seu marido.

 

Segundo as pesquisas histórico-biográficas desenvolvidas por Andriana Negreiros, jornalista que lançou um livro sobre Maria Bonita, esta mulher era caracterizada como espevitada, emponderada e transgressora. Enfrentou todo o tipo de discussão conjugal e nunca se entendeu verdadeiramente com o tal Zé de Neném. Em 1928, decidiu divorciar-se. Mesmo estando inserida numa época em que a separação era algo inaceitável, principalmente para o sexo feminino, não temeu possíveis consequências. Deste modo, Bonita resolveu voltar para casa dos seus pais, para um ano depois ingressar na sua maior aventura. De vontades urgentes no peito, apaixona-se pela lenda do cangaço brasileiro: o Lampião.

 

“Retratos do cangaço: Lampião” – Imagem: Wikimedia Foundation

Virgulino Ferreira da Silva era bem conhecido nas redondezas. Tinha fama de ser o líder mais bem-sucedido do cangaço do sertão, epíteto que o acompanha e o define até hoje. Era popularmente conhecido como Lampião (uma espécie de lanterna), porque conseguia disparar consecutivamente e em simultâneo, iluminando a noite mais escura com os seus tiros. Antes de ingressar nas andanças do cangaço, foi artesão. Alguns historiadores, como é o caso de Frederico Pernambuco de Melo, afirmam que ele foi um reconhecido alfaiate de couro do Pajeú (Pernambuco).  Era um homem alfabetizado e usava óculos, devido a um problema de visão no olho direito. Todas estas características faziam de Lampião uma figura que se destoava da norma nordestina, assim como Bonita. Segundo os historiadores, Virgulino viu o seu pai ser assassinado num confronto com a polícia, por causa de uma disputa por terras. Depois desse acontecimento, jurou vingar-se e dedicou a sua vida ao banditismo cangaceiro. Conta-se que roubava os fazendeiros ricos para alimentar as famílias pobres do nordeste. Ficou popularizado como sendo uma espécie de Robin Hood, que encontrou o amor da sua vida em terras baianas.

 

Maria era baixinha, tinha olhos e cabelos castanhos e o seu rosto era harmonizado pelo nariz afilado. O apelido de Bonita foi-lhe atribuído, julga-se que por jornalistas do Rio de Janeiro nos anos 30, devido às particularidades físicas. A par da beleza, era uma mulher determinada. Todos estes fatores conquistaram a atenção de Lampião. Resultado: depois de pouco menos de um ano o convite para se juntar ao bando dos cangaceiros chegou. Ir para o mato, viver rodeada de homens, de forma nómada e livre, assaltando e enfrentando as forças policiais e políticas dominantes: eram estas as previsões para a vida a dois. O convite foi aceite e Maria Bonita entra por vontade própria nos desígnios do bando, tornando-se na primeira mulher cangaceira.

 

“Retratos do cangaço: Maria Bonita” – Imagem: Wikimedia Foundation

A maior parte das mulheres que acabaram atreladas aos cangaceiros foram raptadas, violadas e violentadas. Maria Bonita foi uma exceção. Foi-lhe concebido livre-arbítrio. Mais uma vez, voltou a contrariar o padrão e ingressou numa vida na mata. Teve que se adaptar à nova rotina, sem tempo para arrependimentos. Caminhou quilómetros sob sol e chuva e enfrentou violentos combates contra as forças policiais, sempre ao lado de Lampião. Foi graças a ela que, segundo os registos históricos, mais de 30 mulheres passaram a participar ativamente no cangaço, dando ao sertão uma lufada de banditismo social feminino.

 

Normalmente, as mulheres cangaceiras eram adjetivadas como masculinas, mas as fotografias de Maria Bonita ajudam a desconstruir o estereótipo. Andava sempre arranjada, apetrechada de adereços e de cabelo alinhado; não se deixava cair no desleixo físico ou no “desalinho da postura”.

 

“Retratos do cangaço: Maria Bonita” – Imagem: Wikimedia Commons

Maria Bonita, além da história de amor banhada por aventuras, teve três filhos com Lampião. Quando engravidava, permanecia escondida no Raso da Catarina, bem no interior do coração do mato baiano. Nesta zona, existia uma comunidade de cangaceiros, munida como todo o tipo de armas, máquinas de costura e gramofones. Durante o período da gravidez e algum tempo depois do parto, Maria Bonita dedicava-se a costurar os trajes típicos dos cangaceiros, adornados com couros, moedas, bordados ou botões. Ali, havia espaço para danças, convívio e descanso.

 

Depois das crianças atingirem os seis meses de idade eram entregues a cúmplices, que viviam permanentemente nas redondezas. Pouco tempo depois, Maria Bonita voltava para o dorso do cavalo, de pistola no coldre, ao lado de Lampião, fugindo da polícia. Regressava à vida sem leis, que procurava contornar as desigualdades sociais. Conta-se que era a primeira pessoa a acordar de manhã, preparando o café para os membros do seu bando. Esse facto valeu-lhe a música Acorda Maria Bonita, composta por Volta Seca – um dos membros do bando do Lampião – que acabou por ficar conhecida no Brasil inteiro. Para ouvi-la, carregue/clique aqui.

 

Partilhou oito anos da vida com Lampião. Em julho de 1938, depois de uma denúncia de um antigo membro, o bando dos “reis” do cangaço foi surpreendido, de madrugada, pela polícia militar. Maria Bonita e Lampião fizeram parte dos nove cangaceiros que foram capturados, mortos e degolados. As suas cabeças viajaram por todos os recantos do Nordeste, com o intuito de desmotivarem possíveis adesões a grupos de cangaço; 30 anos depois, foram enterradas.

 

“Retratos do cangaço: Maria Bonita e Lampião” – Imagem: Wikimedia Foundation

Nos dias que correm, Maria Bonita continua a ser uma personagem muito explorada e debatida. Muitos descrevem-na como um exemplo de força, garra e coragem; outros ficam-se pelos adjetivos de bandida e criminosa. Contudo, o que prevaleceu na História foi o cognome de “mulher pioneira” que alimentou o cangaço com a presença feminina. Viveu livre e à margem da norma, delegando o próprio destino e  existindo sem medidas.

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