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Capas negras que rasgam opiniões

A praxe académica é um tema polémico que divide opiniões. Em prol da integração, jovens recém-chegados ao ensino superior aceitam seguir os rituais que se repetem de geração em geração com o objetivo de criar amizades e memórias. Em diversas partes do país, quem vive a experiência tem olhares diferentes sobre o tema.

 

Quando se fala de praxe, associa-se sempre à ideia de humilhação, superioridade e mau estar. “Dvra Praxis, Sed Praxis” ou “a Praxe é dura, mas é a Praxe”. Na verdade, o objetivo das praxes é, precisamente, o contrário: proporcionar uma melhor integração dos alunos no ensino superior.

Apesar das boas intenções da praxe, muitos casos de incidentes que têm vindo a público a que a opinião pública não seja a mais positiva. O caso com maior visibilidade foi a tragédia no Meco, a 15 de dezembro de 2013, que veio a ser provado em tribunal que o infortúnio não ocorreu verdadeiramente em contexto de praxe. Apenas as pessoas que faleceram estavam relacionadas à mesma. Outra fatalidade que deu o que falar foi a da morte de Diogo Macedo, em 2001, um jovem da Tuna da Universidade Lusíada de Famalicão. Apenas oito anos mais tarde, o Tribunal de Famalicão deu como provado que o jovem morreu por causa de lesões na nuca provocadas por uma revista com que lhe bateram durante a praxe.

Entre quem defende a tradição e quem a abomina, as perspetivas tornaram-se muito polarizadas. Desde as universidades de Coimbra, Évora e Braga ao Instituto Politécnico de Lisboa, tentamos compreender este fenómeno tão ancestral nas instituições de ensino superior portuguesas.

 

A tradição que os jovens mantêm

O berço da praxe e onde se mantém mais próxima dos valores originais é Coimbra. Apesar de nunca ser obrigatória para aqueles que frequentam o ensino superior, a praxe é algo muito publicitado por aqueles que participam, porque, segundo a tradição, têm como objetivo a integração de novos estudantes.

A tradição baseia-se num sistema hierárquico ancestral. Os caloiros, ou seja, os mais recentemente ingressados na praxe académica, têm de respeitar aqueles que estão há mais tempo e que envergam o traje académico. Nesse sentido, é costume fazer com que esses caloiros sejam ‘praxados’ ao terem de cumprir certas tarefas ou atividades que sejam “ordenadas” pelo seu dito superior – doutor, trajado.

A imposição de rituais que evoca superioridade é algo polémica, numa sociedade advoga a igualdade. Afonso Martins tem 20 anos e estuda Gestão de Recursos Humanos, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Quer seja em casa do pai, que mora no Parque das Nações, ou da mãe, que reside em Alvalade, o jovem tem contacto direto com as praxes e as atividades de outros jovens universitários. Nunca gostou das “figuras” que eles faziam: “Sempre tive uma perspetiva negativa em relação à praxe.” O jovem lamenta que “as praxes que são positivas sofram com os estereótipos criados pela população e pelos média”. No seu entender faz com que muita gente – da qual ele faz parte – perca as experiências positivas que pode dar devido “à quantidade de exemplos negativos que existem e que consequentemente são retratados nas notícias”.

As praxes académicas, as regras e o sistema de hierarquias diferem do curso ou instituição. Mas há algo que têm em comum: aquele que está mais abaixo, o caloiro, deve respeitar os que estão na instituição ou na praxe há mais tempo, ou seja, aqueles que envergam o traje académico. Independentemente da rigidez de cada praxe, todas têm regras e para julgar aqueles que não cumprem as regras existe o Tribunal de Praxe. Este pode ser composto por veteranos, que são pessoas que já terminaram o curso e que passaram na praxe.

O traje académico é a imagem de marca do estudante universitário português e que tantas saudades convoca a quem recorda os tempos de estudante. As camisas brancas, os sapatos pretos, as capas negras… Apesar das divergências no traje, de região para região, de instituição para instituição, este simboliza sempre a instituição, o estudante, os seus valores e as vivências. Não é apenas um mero conjunto de tecido. O traje é visto como o meio para atingir a igualdade que se espera num ambiente académico. Simboliza união e camaradagem.

Nuno Gonçalves, 48 anos, antigo aluno da Faculdade de Filosofia de Braga, da Universidade Católica Portuguesa, no ano letivo de 1991/92, recorda os tempos de estudante com um brilho nos olhos. “O traje simboliza toda a minha vida académica. Praxe… Tuna… Associação de estudantes… Todas as longas e loucas noites. As amizades que fiz.” A sua capa, agora já bem velhinha, está guardada num armário em casa, e com ela, todas as memórias dos tempos de estudante, que recorda saudosamente. Assim também Marcelo Santos se sente em relação ao seu traje, que deixou há pouco tempo. O ex-estudante da Universidade de Coimbra vê o traje como “o representante máximo da dura ‘batalha’ que é a vida nesta fase”.

No entanto, nem todos os estudantes veem o traje como algo mais. Para aqueles que não o envergam, os outros podem ser apenas os “morcegos”, os “pinguins”, os “idiotas” ou alguém que se presta a ser igual aos outros e a seguir rituais padronizados. Para Afonso Martins o traje académico representa o “prémio” por tudo aquilo que se passa na praxe. O jovem de 20 anos admite desconhecer as práticas da praxe e, por conseguinte, o significado do traje académico.

 

Visões distintas

Margarida Jesus tem 21 anos e é recém-licenciada em Publicidade e Marketing, na Escola Superior de Comunicação Social. Quando descreve como foi o seu contacto com a praxe, fala da experiência com um sorriso no rosto. A jovem sempre disse que não queria entrar na praxe. “Via os universitários na rua e dizia para que nunca iria passar por aquelas vergonhas. Por amor de Deus! No dia da receção ao caloiro, o último “posto” era o da praxe. Fizeram-na descer uma escada, aconteceu uma espécie de “ritualito” e pediram-lhe o e-mail porque o seu ano de caloira foi em 2020, o primeiro da pandemia”, conta. Como não queria fazer parte da praxe, admite que teve a esperança de ter dito mal o e-mail aos trajados. Começando a sua praxe através do ecrã do computador e desconfiança inicial, terminou o seu percurso na praxe e na ESCS, em 2023, na comissão de praxe.

No outro lado da moeda, Laura Melo, 21 anos, fez parte da praxe da Escola Superior de Educação de Lisboa, mas acabou por desistir dois meses depois. Laura Melo queria entrar para a praxe para ter novas experiências e fazer amizades. Sempre tinha ouvido falar bem da praxe. Esperava que aquilo fosse mesmo “a sua cena”. Hoje, fala amarguradamente da experiência, que foi do sonho ao pesadelo. “Todas desistimos ou fomos obrigadas a desistir.” A jovem de descreve a sua praxe “como autoritária, controladora, pouco saudável e nada acolhedora”. O seu grupo de amigas que fez na praxe, agora está no 2ºano de licenciatura, não traja, e sente que é tratada de maneira diferente porque não foi até ao fim.

 

Olhos no chão

Matilde Ganhão, 18 anos, estuda Enfermagem na Universidade de Évora. Está na praxe há oito meses e sempre teve o bichinho da praxe. Queria entrar para criar novas amizades, para se integrar e conhecer a tradição académica. É adepta das praxes, nas quais participou ativamente durante as duas semanas e meia em que decorreram. Horas e mais horas, atividades pela noite fora, jantares de curso até tarde, tudo isto com aulas de manhã no dia seguinte. Tudo se faz. Nunca sentiu que fosse um ser inferior apenas por ter de obedecer a um conjunto de regras ou de pessoas. “A hierarquia existe em todo o lado, no trabalho, em casa, na escola… Na praxe, não é diferente”, afirma. Na opinião da estudante, ser hierarquicamente superior não equivale a ter mais poder. Como acredita, “tem a ver com respeito, no sentido de se ter de respeitar aqueles que são mais velhos e que estão em anos superiores ao nosso”.

Ao contrário, Laura Melo recorda que a praxe na Escola Superior de Educação de Lisboa era muito autoritária e não sentiu a felicidade que tanto esperava, quando ingressou no ensino superior. “Não sentia que a praxe me aproximava dos ‘mais velhos’ do curso”, diz. A estudante descreve que havia uma grande separação dos trajados para com os caloiros e faziam questão de o demonstrar: “Caloiro é bicho, caloiro é imundo, caloiro não tem poder nenhum” – até mesmo fora do contexto de praxe, nos corredores da escola.

O ponto de vista do caloiro, de alguém que chega a uma realidade totalmente nova, que quer criar laços com pessoas leva, muitas vezes, a que o estudante se submeta a situações menos confortáveis, em nome da integração. Laura Melo chegava da praxe e chorava quase todos os dias. Queria desistir. A jovem confessa sentir-se hoje arrependida por ter admitido determinados atos. “Pus os meus valores de lado para continuar naquela porcaria.”

Na ótica de Afonso Martins, jovem estudante do Instituto Superior de Ciências Socias e Políticas (ISCSP), da Universidade de Lisboa, os abusos de poder são algo inaceitável e são a sua maior crítica, enquanto pessoa anti-praxe, às praxes, no geral.

 

Noites sem dormir

A vida académica pode ser desgastante, especialmente para aqueles que estão na Comissão de Praxe e aqueles que organizam as atividades. Margarida Jesus, que abandonou o cargo recentemente, admite que “é um bocado desgastante”. No entanto, sente prazer quando vê a felicidade na cara dos seus caloiros. Quando vê que estão felizes e com amigos que fizeram em contexto de praxe. “Isso é que me faz feliz.”

Nuno Gonçalves ingressou na faculdade em Ano Propedêutico, o equivalente ao 12.º ano. Entrou na praxe como pré-caloiro e foi praxado por dois anos, processo que nunca considerou esgotante. No 2ºano do curso, contra o que é normal, foi convidado para a Comissão de Praxe. “Tínhamos de andar em cima da praxe, preparar praxes e organizar a Semana do Caloiro. Todavia, isso era tudo compensado pelas amizades, camaradagem e tudo o que vivi durante esses cinco anos”, refere.

Diogo Rosa, 19 anos, estudante de Engenharia de Informática e de Computadores, no Instituto Superior de Engenharia (ISEL), do Instituto Politécnico de Lisboa, é da opinião de que conjugar a praxe com o estudo para exames e trabalhos não é tarefa fácil. Diogo saiu da praxe porque já não conseguia conciliar as atividades, que eram longas e depois das aulas, com o estudo. Apesar de ter o sonho de trajar, decidiu terminar o seu percurso na tradição académica para não prejudicar os seus resultados. “Se quisermos estar na praxe, temos de saber gerir o tempo na praxe, para estudar, para fazer trabalhos e ainda para termos um pouco de sanidade mental.” Quando a pessoa responde, colocando na resposta o tu, dirigindo-se ao

 

A origem da tradição

A praxe, como a conhecemos, surgiu no final do século XX. No entanto, esta prática tem origem logo no aparecimento das universidades em Portugal, em Coimbra. Naquela que é hoje conhecida como a cidade dos estudantes surgiu a primeira universidade, no século XIII, e com o seu aparecimento emergiram as primeiras tradições académicas. O termo “praxe” passou a ser utilizado e, no século XVIII, foi proibida a sua prática por D. João V, após a morte de um estudante recém-chegado à universidade. Já no século XX, em 1969, durante a crise académica, não só as praxes são abolidas, como o Estado Novo também proíbe todas as práticas de “tradição académica”. Surge assim o luto académico que luta contra o regime autoritário que é o Estado Novo. Nos anos 1980, a tradição voltou e começou a espalhar-se pelo resto do país de forma gradual.

 

Por Inês Gonçalves, Leonardo Costa e Tiago Bastos, alunos da licenciatura em Jornalismo da Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa.

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