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Descobrir a própria coreografia

Apesar de ser um tema intemporal, o direito à liberdade de expressão é um tema da ordem do dia devido às ameaças que tem sofrido. Fala-se cada vez mais em limites e em censura em diversas áreas, como a cultura. O digital, mais concretamente as redes sociais, têm grande peso nesta questão

 

Amélia Videira é atriz e é testemunha de um tempo em que não se podia expressar livremente, nem sequer em família. Após o 25 de Abril de 1974, tudo mudou, principalmente na sua carreira profissional, pois foi na década de 70 que ingressou o mundo da representação pela primeira vez. “Foi tão bom saber que podia pensar em voz alta e trocar ideias e, que dessa troca, eu poderia crescer. Quando não se fala, não se cresce. Quando não se lê, não se cresce. Quando não se pensa, não se cresce”, afirma. Para a atriz de teatro, “o sentir, o pensar, o discernir e o ousar são verbos muito importantes porque nos permitem usufruir da liberdade de expressão na sua íntegra”.

Rita Silva, locutora da OnFm, já nasceu após a Revolução, mas este facto não a impede de ter consciência da importância deste direito. “Com o 25 de Abril, surgiu uma onda de vontade de partilhar informação e conhecimento, proveniente de todos os anos de censura que Portugal enfrentou”, relata. A jovem locutora e estudante de Jornalismo na Escola Superior de Comunicação Social (ESCS), do Instituto Politécnico de Lisboa, acredita que “a liberdade de expressão é aquilo que nos permite crescer enquanto pessoas e indivíduos”. Este direito é crucial para a área em que se está a formar e em que já está a dar os primeiros passos.

A liberdade de expressão é um direito que está consagrado nas principais cartas de direitos a nível nacional e internacional. Desta forma, a noção de democracia está intimamente relacionada com este direito. Segundo o Índice de Democracia 2022, 35 países apresentam, no entanto, uma degradação da sua liberdade de expressão. Profissionais ligados à educação e que todos os dias contactam com questões éticas e deontológicas, no dia a dia como docentes em áreas tão diversas como a Ética e Deontologia Jornalística ou a História, mostram-se preocupados com dados que possam revelar um retrocesso civilizacional, nomeadamente ao nível das liberdades fundamentais. “É um direito completamente imprescindível para nos emanciparmos enquanto seres humanos. Sem liberdade de expressão não há liberdade. É a liberdade plena de alguém poder ser, dizer, fazer e, sobretudo, pensar”, reforça Maria José Mata, professora na licenciatura e mestrado em Jornalismo, na Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa (ESCS). Helena Monteiro, historiadora e professora no Colégio Amor de Deus, em Cascais, complementa esta noção, transmitindo que “a liberdade de expressão é um direito de todos. É poder dar opinião, intervir e responder sem medo. Não se pode, em nome desta liberdade, agredir gratuitamente ou desonrar alguém”.

 

Tudo tem um limite

Os limites à liberdade de expressão são subjetivos, pois cada um define os seus, consoante as crenças pessoais. Contudo, de acordo com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a liberdade de expressão também implica certos deveres e responsabilidades para assegurar a democracia, a segurança nacional, a integridade territorial, a defesa da ordem e a prevenção do crime, por exemplo. “Os limites decorrem da nossa responsabilidade enquanto cidadãos. A liberdade de expressão é um direito que não deve ter um limite de imposição, no sentido de levar as pessoas a sentirem que não se podem expressar livremente, de uma forma responsável”, menciona Maria José Mata.

Amélia Videira sempre lutou para seguir a profissão que mais gostava, mas nem sempre foi fácil. A atriz sentia-se muito condicionada pelo regime do Estado Novo. Atualmente, sente que é livre, ainda que tenha plena noção dos seus limites: “Não podemos escrever tudo o que nos apetece. Tem de haver ética e respeito pelo outro. Vivemos numa sociedade que tem códigos de conduta. A liberdade de expressão não pode ser insultuosa”. A atriz recorre à experiência no teatro para reforçar que não temos o direito de maltratar alguém, apenas porque não estamos de acordo com essa pessoa. “Quando digo a alguém, no teatro, que não gostei da sua interpretação, não posso chamar a pessoa de imbecil. Isso é dirigir um insulto. Que liberdade de expressão é esta?”, interroga.

Para além do teatro, o humor é outra das áreas em que recorrentemente são abordados temas que poderão gerar controvérsia, uma vez que está carregado de críticas, reflexões e interpretações do mundo da parte de quem o produz. Pedro Sousa é humorista e nunca trabalhou noutra área para além do humor. Começou a trabalhar como guionista no programa da RTP “5 para a Meia Noite”, em 2014. Pedro Sousa enfatiza que o único limite ao seu trabalho é o código penal. “Todas as pessoas têm o direito de se sentir ofendidas, mas todas as pessoas também têm o direito de se expressar como bem entendem, desde que não incitem ao ódio. O meu limite é o código penal.”

 

Imagem: Freepik

 

Beliscar a cultura

Os livros de Enid Blyton, escritora de “Os Cinco” e “Noddy”, estão a ser escondidos nas bibliotecas britânicas por, alegadamente, conterem uma linguagem desatualizada e ofensiva. Mais concretamente, devido a serem utilizados termos como “queer”, “gay” e “castanho”, assim como a expressão “cala a boca”. Esta prática levou a que muitos profissionais da área da cultura se insurgissem, como é o caso da autora Isabel Alçada, que considera esta situação absurda, e do ator Tom Hanks, que afirmou que irá boicotar quaisquer livros reescritos. “Ouço coisas horríveis. Agora querem reescrever livros porque algumas palavras podem ofender as pessoas? Um gordo é gordo. Chamar alguém de gordo é que não pode ser algo discriminatório. Isto para mim é censura. É limpar o passado, mas o passado não se limpa, foi o que foi. O presente é o resultado de uma caminhada que vem de trás”, sublinha a atriz Amélia Videira.

Pedro Sousa revela que nunca foi alvo de algum tipo de censura no seu trabalho. Contudo, há temas que já não aborda por acreditar que não têm qualquer sentido, mediante as transformações que ocorrem no mundo. “É impossível fazer conteúdo que não ofenda pelo menos uma pessoa. E, sabendo isto, há também a certeza de que uma se vai rir”. O humorista afirma que, em conversas que tem diariamente com os seus colegas e amigos, depreende que a grande maioria dos profissionais do humor não está muito preocupada com a censura aos seus trabalhos. “A principal preocupação de um humorista é ter graça. Não acordo todos os dias a pensar que não posso dizer algo que quero por causa de censura. Se existir, pelo menos, uma pessoa a achar graça ao que faço, para mim, já é válido, desde que a única pessoa não seja eu próprio”, confessa.

 

O mundo digital

O aparecimento da internet e, mais concretamente das redes sociais, apresentou um espectro de possibilidades, em termos de divulgação e amplificação da nossa expressão. Todavia, podem ser simultaneamente uma mais-valia e um perigo, pois as barreiras das redes sociais não são físicas, o que dificulta a implantação e a identificação de limites. “No revés de todas as possibilidades que a tecnologia nos oferece, assistimos a uma limitação que não é clara, mas que existe no subtexto”, salienta a professora Maria José Mata. Num mundo cada vez mais digital, as redes sociais constituem-se como um dos principais vetores de proliferação de fenómenos como as fake news, a cultura do cancelamento e o discurso de ódio.

As fake news são, como o nome indica, notícias falsas. Embora os profissionais de informação, como muitos jornalistas, discordem da terminologia, alegando que se são falsas, não podem ser notícias, estas baseiam-se na disseminação deliberada de desinformação ou de boatos. “Ouve-se muito falar de informação falsa, desinformação e fake news. Para mim, são limites à liberdade de expressão porque introduzem a desconfiança e, sobretudo, alertam para uma forma de expressão que necessita de constante confirmação. As pessoas tendem a aceitar opiniões de pessoas que pensam como elas, que falam como elas, que circulam no mesmo meio, e todas as opiniões dissonantes tendem a ser condenadas e alvo de agressão e injúria. Para além disso, a cultura do cancelamento e os discursos do ódio são muito graves e são problemas muito atuais”, frisa a professora da ESCS.

A cultura do cancelamento é um fenómeno que surgiu com o #MeToo, um movimento social contra o abuso e o assédio sexual. Esta cultura consiste na expulsão de uma pessoa ou de um grupo de uma posição superior, devido a atitudes ou comentários considerados controversos, desajustados ou inadequados. Algumas personalidades, como Kanye West e Ellen DeGeneres, já foram alvo desta cultura. O rapper Kanye West foi cancelado, nas redes sociais, em 2019, por se demonstrar a favor de Donald Trump. Já Ellen DeGeneres foi cancelada, em abril de 2020, porque começaram a surgir denúncias dos membros da equipa do programa “The Ellen DeGeneres Show”, devido a maus-tratos, por parte da apresentadora.

Um estudo realizado pela Dove, em maio de 2023, inserido na iniciativa Projeto Pela Autoestima, revelou que as redes sociais tiveram já um impacto negativo em dois em cada cinco jovens em Portugal. “A internet e as redes sociais podem ser nefastas porque entram dentro de casa sem ninguém dar por isso e alteram, mesmo que inconscientemente, a mente das pessoas. Deixamos de fazer coisas porque nos censuramos a nós próprios”, menciona Amélia Videira. A atriz manifesta também uma grande preocupação relativamente à perda da singularidade, principalmente nos jovens, pois isso poderá condicionar também a liberdade de expressão. “Agora dançam todos a mesma dança, já não descobrem a sua própria coreografia”, destaca.

As redes sociais contribuem para a homogeneização de formas de pensar, agir e sentir. Consequentemente, algumas pessoas sentem-se condicionadas a seguir um padrão e quando não conseguem seguir esse mesmo padrão, têm medo das consequências que poderão advir. Rita Silva, enquanto jovem e utilizadora de redes sociais, acredita que “as pessoas ficam um pouco reticentes em expressar as suas ideias na internet pelo receio das opiniões dos outros”. E acrescenta: “Num espaço que devia ser utilizado como um fórum de partilha livre de ideias e conhecimento, considero que existe simultaneamente muito receio do julgamento que pode advir dos outros”. Maria José Mata corrobora com a opinião de Rita, frisando que “existe um perigo e uma forte ameaça à liberdade de expressão, quando a autocensura é definida pelo medo, quando as pessoas não dizem o que pensam porque temem o que lhes vão dizer nas redes sociais e quando receiam ser alvo de discriminação e chacota”. Para além do medo que as pessoas possam sentir, as próprias redes sociais possuem algoritmos e mecanismos de moderação que filtram, e até mesmo proíbem, a partilha de certos conteúdos, considerados impróprios.

 

Imagem Freepik

 

Combate aos desafios contemporâneos

O Índice de Democracia 2022 demonstrou que Portugal é um dos países com maior liberdade de expressão. De acordo com a organização Repórteres Sem Fronteiras, o país ocupa o 7ºlugar do ranking mundial. “Em Portugal, a situação é muito aceitável, mas existem limites devido à evolução do mundo. Tem de haver, e é necessário que haja, uma consciencialização das lutas e dos problemas das outras pessoas. O facto de sermos um país pequeno faz também com que as coisas não tomem proporções grandes”, defende o humorista Pedro Sousa.

Para Maria José Mata, a educação é um vetor importante no combate aos novos desafios que se têm vindo a afirmar. A professora da ESCS defende que a literacia mediática é uma das grandes apostas que tem de ser feita para que o cidadão comum desenvolva o seu espírito crítico e esteja alerta para eventuais limitações. “Acredito e quero acreditar que temos, de facto, uma situação privilegiada em Portugal, mas nós só temos consciência daquilo que perdemos quando perdemos”, relata a professora da ESCS. Preocupada com o futuro, confessa ainda que “não gostaria que essa consciência da perda da liberdade de expressão só fosse conseguida através da perda da própria liberdade de expressão”.

 

Por Madalena Pedro, aluna da licenciatura em Jornalismo da Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa.

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