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Entrevista a Hernâni Miguel

Da Lisboa do fim dos anos 70, pós 25 de Abril, emergiu uma geração determinada a dar à capital um novo dinamismo, até então proibido. O fado tornou-se vizinho do rock, do funk, do jazz, da electro pop, das batidas africanas. E desta mistura de géneros, gostos e influências, floriu uma Lisboa multicolor, cosmopolita e vibrante.

De entre os muitos que impulsionaram este movimento, surgiu um jovem africano com vontade de criar em Lisboa algo nunca antes criado, de prolongar as noites ao infinito, e que, de projecto em projecto, se tornou um ícone alfacinha. Não, não falo do mítico Zé da Guiné, mas do seu compatriota e não menos prolífico Hernâni Miguel. Ele é hoje considerado um dos pioneiros da noite de Lisboa, catalisador de uma dinâmica sem precedentes que fez do Bairro Alto o coração de Lisboa fora de horas. O Impossibly Funky, a sua mais recente casa, é um bar despretensioso, com decoração retro, onde reina o ambiente soul/ funk. Cada noite da semana reserva o seu lote de surpresas. Foi neste espaço totalmente inédito em Lisboa que ele nos provou mais uma vez que ainda consegue inovar, estar na contramão das tendências e modas da noite. E o público agradece.

Como é que começou a trabalhar no universo da noite lisboeta?

Nos anos 80 fui convidado para ser porteiro, depois Relações Públicas de um espaço no Bairro Alto, que era o Rock House. Quando me apercebi que não valia a pena estar a trabalhar para outrem, comecei eu e outros amigos meus a mover-nos para abrirmos os nossos espaços. Depois, como tinha sempre grandes amigos, que não abdicavam de estar ao pé de mim, esteticamente a música era boa… Havia um culto, “eu e os meus amigos”! E essa força prevaleceu. A partir do momento em que eu entrei na noite, passado pouco tempo apareceu também outro africano chamado Zé da Guiné; nós fundimo-nos, criámos uma nova noite em Lisboa, e as coisas começaram a fluir. Há uma noite ANTES de nós e uma noite DEPOIS de nós.

Qual foi o primeiro espaço nocturno que abriu em Lisboa?

Eu e o Pedro Lata abrimos o Café Concerto, foi o primeiro espaço que nós tivemos no Bairro Alto. Durante 15 a 20 anos foi sempre Bairro Alto. Depois abri o Lábios de Vinho, Ocarina, ajudei a abrir os Três Pastorinhos, o Bairro Alto Bar… Fiz o meu bar, que foi um dos ícones dos anos 90, o Targus. Ajudei a abrir a Indústria, fui a Oeiras e fiz o Pólvora Café Concerto, fiz na Expo mais dois ou três bares, na Praça do Comércio abri um espaço gigantesco… Tenho tentado andar sempre um passo à frente.

Justamente, uma coisa que caracteriza os espaços que abriu ao longo dos anos é o facto de marcarem a diferença com o existente. Como é que decide do ambiente e do conceito que atribui a cada um dos seus bares?

Há sempre um conceito adjacente; mas depois quando entro nos espaços tenho que lhes sentir a Alma. Ao sentir a Alma do espaço nós muitas vezes mudamos de ideias. Depois temos amigos que nos dão dicas. E eu sempre estive rodeado de duas grandes arquitectas, que são a Maria Soledad de Sousa e a Maria Manuel von Hafe. Sempre que eu fazia qualquer coisa elas opinavam; quando eu abri o Targus foram elas que fizeram totalmente esse espaço. O Targus é uma coisa que ainda hoje é um momento fantástico, uma referência mesmo 20 anos depois.

Os seus espaços, e em particular o Targus, o mais emblemático, sempre conseguiram criar uma osmose entre pessoas de todos os estratos e horizontes…

Porque eu acho que o mundo é global. E o mundo sendo global nós temos que ter tudo junto. Desde que haja respeito e haja espaço para todos, é o fundamental. Mas há uma coisa que eu faço sempre questão: é que os meus espaços sejam musicalmente identificáveis e sejam multirraciais. Eu sempre defendi isso e continuo a defender, porque a multirracialidade é que faz com que nós sejamos todos melhores.

O facto de ser um africano crescido em Lisboa, que defende a diversidade sob todas as suas formas em tudo o que faz, faz de si um cidadão do mundo e da Lusofonia?

Eu não gosto do termo lusofonia. É muito paternalista, e às vezes roça um bocado o colonialismo. Mas é assim: eu sou um cidadão do mundo, como todos nós somos. Sou um africano que veio após 400 ou 500 anos de outros africanos terem vindo cá. Não é impunemente que esta era uma das rotas dos escravos, nunca nos podemos esquecer disso. Agora… eu sou um Africano Novo. Sou um Africano Novo que não tolero nem admito que haja uma destrinça. Sou um Africano Novo, uma génese nova de africanos que já cá está há muito tempo; e faço questão de me afirmar como um Europeu Africano, ou um Africano Europeu, tanto faz. Tudo comigo tem que ser tratado com base na mesma igualdade, e eu não admito que haja deturpações. Somos cidadãos do mundo, pagamos os nossos impostos, e o resto a mim não me interessa. As cores não existem para mim.

Justamente, o Hernâni chegou a Lisboa aos 6 anos de idade, em pleno período colonial, integrou-se num meio privilegiado. Como africano deve ter ouvido algumas palavras desagradáveis, devem-lhe ter criado obstáculos ao longo do caminho por causa da sua origem…

O racismo ainda hoje existe, quem disser que não existe é mentira. Há vários racismos, sempre houve. E o racismo social é o mais forte deles todos. Também há o racismo da cor, mas esse não me afecta muito. Afecta-me mais o social. Nós não valemos pelo dinheiro que temos, ou pelo nosso status, valemos – esta é a minha filosofia – pelo que nós somos.

O facto de se ter tornado um líder num meio onde era minoritário é também uma prova da sua insubmissão? O facto de ter conseguido criar esta comunhão entre diferentes pessoas na noite lisboeta foi a melhor resposta a todo o tipo de discriminação que sofreu aqui?

EXACTAMENTE!

Fale-nos um bocado do espaço onde estamos, o Impossibly Funky.

Como reparas, mais uma vez inovei! É o único espaço na Península Ibérica que tem Soul Funk e Jazz. Bandas de soul, funk, disco sound, jazz. Tudo o que ouvimos aqui remete a esses géneros. Tem que ser um espaço cool, agradável, onde as pessoas possam dançar, possam falar… Tem duas partes muito distintas: uma parte de bar, que abre muito cedo, e uma parte discoteca – nightclub, com música ao vivo, performances… No meu entender, quando eu falo em Funky, é uma atitude, é um estado próprio, é uma cultura; e a cultura funk permite que nós todos sejamos diferentes. Porque se nós olharmos para os primórdios do funk, da disco ou do jazz… tanto musicalmente como esteticamente, as pessoas eram muito diferentes. Ninguém era igual! Todos a comungar pelo mesmo bem, que é a diversão, o bem-estar, coisas positivas. A liberdade absoluta. Grande respeito e Liberdade. Eu acho que é a única forma de nos darmos todos bem: Liberdade e Respeito.

Eu já tinha feito vários bares, e sempre senti que fazia falta um bar de soul. E quando convido o António, o meu sócio, que é arquitecto, para entrar comigo neste espaço, “epá só entro contigo se for um bar de soul!” Depois fomos “degladiando” e discutindo os pormenores todos. Ele foi apresentando propostas, e eu fui aceitando ou rejeitando. Ele por sua vez, reformulava.

Depois de 30 anos a frequentá-la e a fazê-la, que olhar tem sobre a noite lisboeta actualmente?

Tenho um olhar muito vasto e crítico, porque acho que todos imitam muito os espaços uns dos outros, não fazem coisas originais. Muitas vezes parece que o vizinho vê um bar e faz uma réplica. Não funciona! Nós temos que ter criatividade, temos que ousar educar as pessoas, também.

Disse também que os seus primeiros 20 anos de noite foram no Bairro Alto. Como é que se sente ao afastar-se da sua “casa-mãe”, vindo aqui para o LX Factory?

Eu não me sinto afastado da casa-mãe porque é assim: eu sou um alfacinha assumido; vivo na Baixa e vou ao Bairro Alto todas as semanas. Mas aqui estou num espaço que é um cluster top da cidade de Lisboa; mais uma vez estou num espaço top, como já tinha estado no Terreiro do Paço, onde fui o primeiro a abrir um bar… Agora que vim para o LX Factory, onde já tinha estado, pois ajudei a implementar a livraria Ler Devagar, e vim por ser um espaço de qualidade. Mais uma vez senti que era o sítio onde eu tinha que estar, no momento exacto. Há muitos espaços, restaurantes, escritórios, designers à volta… É um cluster moderníssimo, mas eu não estou a contar só com o que tenho à volta, conto sobretudo com a minha capacidade de arrastar o público para um lugar original e diferente.

Que outros projectos tem para 2013?

Vou continuar a produzir discos. Vou continuar a ser manager de bandas. Vou continuar a promover espaços lindíssimos, e agora estou à procura de dois sócios para abrir um bar de Jazz e de música clássica na Baixa de Lisboa. Espero atrair um público não necessariamente conhecedor, mas que venha mais uma vez para o caminho do bem. Pessoas que gostem de estar juntas, pessoas que gostem de falar, pessoas que gostem do silêncio… Depois cada um tirará as suas ilações.

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