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Memórias de uma terra afogada

A 9 de janeiro de 1963, uma “nuvem negra” assombrou a Lagoa de Santo André, quando uma onda gigante deixou as famílias de 17 pescadores de luto. Passaram 60 anos. Analídia Ferreira, Fausto Rodrigues e Madalena Viegas partilham o testemunho de quem viveu, viu e sentiu esta tragédia

 

Era a pesca que sustentava a Lagoa de Santo André, uma pequena aldeia no Alentejo Litoral, e foi a pesca que a destruiu. No verão, praticava-se a arte xávega, mas no inverno, quando o mar estava demasiado bravo, era na lagoa que se pescava. Havia dois tipos de pesca que se podiam praticar na lagoa: o chinchorro e a chincha. O primeiro era a pesca diária, realizada em pequenos grupos ou até mesmo individualmente, por quem tivesse barco. Já a chincha, com rede de arrasto, acontecia uma vez por ano, a mando do rendeiro da lagoa nesse ano. Por precisar de uma imensa mão de obra, havia pessoas a chegar de várias localidades na zona, de Brescos a Melides, quer fossem pescadores ou não.

Naquele dia, era a chincha que orientava a pesca. Estava um temporal, mas não eram os ventos fortes que atormentavam os pescadores já habituados à dureza da faina. Hermínio José Mendes, um dos sobreviventes a esta tragédia, descreveu ao Correio da Manhã, em 2013, o ambiente que se vivia nesse dia: “Às vezes, nem se sabia onde acabava o mar e onde começava a lagoa.” Mas vendavais como aquele até eram agradáveis, pois propiciavam a pesca com a água fria e mexida, dava para apanhar até uma tonelada de enguia.

 

A água do mar entrava na lagoa, criando uma zona aberta profunda com uma barreira de cada lado. Sentindo a água fria, o peixe aproximava-se dessa área, pelo que era exatamente aí que estavam a pescar. Apesar da agitação do mar, ninguém previa que uma tragédia como a daquele dia pudesse acontecer. “Pessoas experientes, como o meu avô, o meu pai, o mestre da embarcação, ter-se-iam deslocado, se eles tivessem previsto que aquilo ia acontecer”, explica Analídia Ferreira, à época com apenas 14 anos. A jovem tinha estado a ajudar o primo Fausto Rodrigues, na altura com 9 anos, a fazer os trabalhos da escola. Mais tarde, quando ele terminou, decidiu pegar na telefonia e ir para a esquina da sua cabana ver a família pescar, enquanto ouvia os discos da Emissora Nacional. “Um período antes, tinham estado a pescar mesmo em frente à minha habitação, mas depois afastaram-se dali para a zona da aberta.” Ao ver a cena, correram ao local. “Não dá para descrever, foi uma bomba.”

 

O pai de Analídia estava a sair da água, a segurar um rapaz, que se encontrava também a pescar. “Lembro-me perfeitamente de ele mandar o miúdo para cima da barreira para o salvar e voltou para dentro de água. Fui a correr, agarrei o meu pai e nunca mais o larguei. Fiquei literalmente colada. Ele tentou entrar, porque o meu primo agarrou-lhe os pés e ele teve que o soltar para não ficarem lá os dois”.  Não tivesse sido Analídia, esta história podia ser diferente. Muitos foram os pescadores que tentaram voltar atrás para salvar alguém, mas sem sorte. “Chegavam e viam que faltava um familiar, então jogavam-se para dentro de água para ver se os encontravam. Dois deles não voltaram”, recorda Fausto Rodrigues, hoje com 68 anos. Analídia salvou o pai deste destino. No entanto, não foi, no seu entender, o tamanho da onda que causou esta tragédia: “Não posso dizer que era uma onda gigante porque vi ondas muito maiores. Para mim, ondas gigantes eram aquelas que chegavam às habitações. Aquilo aconteceu simplesmente porque eles estavam no lugar errado, à hora errada. A onda acabou por ser gigante porque ela ali avolumou-se.”

 

Com a força e a intensidade da água, a espuma que o mar traz quando está bravo, a chuva e as roupas pesadas típicas da época, oleadas e com botas que chegavam até às virilhas, até quem nasceu a saber nadar tinha poucas hipóteses de sobreviver. Nessa altura, as condições também não ajudavam. “Hoje em dia, além de termos menos pescadores na lagoa, existem outros meios de socorro que não existiam à época e, se calhar, as próprias equipas e os meios de busca e salvamento já seriam outros. Houve aqui um período, por exemplo, na tentativa de encontrar as 17 vítimas, em que quatro delas estavam desaparecidas durante a noite e só de manhã é que foi possível retomar as buscas, tendo sido os próprios pescadores a se meterem nos barcos e a recolher os quatro corpos que estavam em falta”, comenta David Gorgulho, atual presidente da Junta de Freguesia de Santo André.

A alegria que se afundou no mar

Com tristeza na voz, Analídia Ferreira relata que a tragédia do inverno de 1963 mudou, para sempre, a terra que a viu nascer: “Antes da onda, a Lagoa de Santo André era uma povoação muito alegre. Havia festas muito grandes, como a Caçada da Lagoa dos galeirões, ou galos da lagoa. Era uma coisa fabulosa, lindo de se ver.” A própria Festa do São Romão, que ainda se realiza todos os verões, na costa de Santo André, não tem, segundo Analídia, “tanta importância como antigamente”.  No mês de agosto, a Junta de Freguesia de Santo André, com o apoio da Câmara Municipal de Santiago do Cacém, organiza a icónica recriação do Banho de São Romão, que representa o dia em que a população do interior do concelho ia à praia, durante a primeira década do século XX, quando a pobreza e a miséria não permitiam transportes e as pequenas aldeias ficavam isoladas.

 

A partir de 9 de janeiro de 1963, quem viesse à Lagoa via uma nuvem negra. “Foram dias muito tristes. Ficou tudo de luto, porque era tudo família. Eu perdi o meu pai, dois tios e dois primos. Não houve ninguém que não tivesse perdido alguém. Lembro-me, no dia seguinte, das camionetas com os caixões”, recorda Madalena Viegas, na altura uma menina de 6 anos e hoje uma mulher de 66. “Da parte da junta de freguesia e, principalmente da câmara municipal, houve um acompanhamento muito próximo. Atendendo à quantidade de perdas humanas, houve grandes dificuldades, na altura, em conseguir a garantia de condições logísticas. Com o transporte e o fornecimento dos caixões por parte da autarquia, foi possível depois fazer esse trabalho”, revela David Gorgulho.

 

Não foram só as músicas dos festejos tradicionais que se silenciaram na Lagoa. A população também começou a desertar, a maioria para Sines. As marcas que aquele dia deixou foram profundas com memórias que atormentaram Analídia durante anos. “Não dormia, tinha pesadelos e lembro-me de tomar Valium 10. Quando fomos para Setúbal, tinha crises de pânico. Hoje, sei que eram crises de pânico, na altura desconhecia.”

 

Imagem Freepik

 

O regresso da esperança à Lagoa

Por causa do trauma que os pescadores sofreram, a pesca foi perdendo importância nos últimos 60 anos. No entanto, ventos mais amenos parecem estar a trazer a atividade de volta à Lagoa de Santo André. Atualmente, já há uma importante comunidade piscatória, formada por pessoas que vieram de outras terras para a aldeia. Fausto, tal como o irmão, faz parte dessa comunidade, mas confessa que, durante uns cinco ou seis anos, aquele dia afetou a sua relação com o mar e com a praia. “As cabanas começaram a ficar abandonadas, a câmara não teve sensibilidade de aproveitar algumas, porque era muito bonito que ali estivessem, e perdeu-se a terra.”

 

O presidente da junta de freguesia sublinha que “a parte da lagoa é um ex-líbris ambiental e turístico muito importante para a economia local”, mas justifica a incapacidade da autarquia para intervir “por causa de a maioria dos terrenos ser propriedade privada e, sendo assim, a ação da autarquia está muito limitada”. No entanto, David Gorgulho garante que a Junta de Freguesia irá homenagear estas vítimas e assinalar a data fatídica: “Faz 60 anos desde que aconteceu aquela tragédia. Era para termos feito algo no dia 9 de janeiro. Na altura não foi possível, mas, em princípio, vamos fazer uma missa na Festa de São Romão para homenagearmos estas vítimas.”

 

A Lagoa de Santo André está integrada na Reserva Natural das Lagoas de Santo André e da Sancha e, apesar da pressão dos pescadores, o ICNF (Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas) tem impedido que a lagoa seja aberta ao mar. “Houve duas tentativas de abrir a lagoa, nos dias 7 e 11 de março, que correram mal. Já não é a primeira vez que isso acontece”, explica o presidente da junta. A abertura ao mar é necessária para permitir a entrada e saída de espécies piscícolas, a lavagem do fundo da lagoa e a renovação das águas.

As autarquias locais, em conjunto com o movimento cívico de defesa da Lagoa de Santo André, já contactaram, como afiança David Gorgulho, múltiplas vezes o ICNF e a Agência Portuguesa do Ambiente para resolver a situação. No entanto, a única resposta concedida é, segundo o presidente, a de que estavam a tratar do assunto. “Não nos indicam uma data, não nos dizem que diligências é que já fez. Entretanto, já foram ultrapassados todos os prazos que os pescadores consideram como razoáveis para que a abertura pudesse ser bem conseguida, que satisfizesse todos os objetivos. Alguns deles já foram comprometidos, de maneira a que nós nos sentimos desrespeitados pela Agência Portuguesa do Ambiente.” Numa altura em que a Lagoa e os habitantes desta aldeia começam a dar os primeiros sinais de conseguirem virar a página, o apoio do ICNF pode ser o impulso que falta para que essa realidade seja possível.

 

Por Inês Simões Gonçalves, aluna da licenciatura em Jornalismo da Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa.

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