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Pode a Inteligência Artificial criar obras de arte?

A pergunta pode parecer provocadora mas não é inocente. A identidade do mundo moderno funda-se nessa relação de simbiose entre o ser humano e a máquina. E sabemos que toda a obra de arte é impossível sem uma componente tecnológica. O homem existe historicamente porque deixa a sua marca no espaço e no tempo, porque regista o seu legado, porque cria e conserva o seu património. Mas porque também alimenta o seu pensamento através da imaginação, isto é, a «milagrosa» capacidade de inventar imagens complexas que representam o génio da criatividade.

 

Desde tempos pré-históricos que o ser humano se define por essa qualidade específica de ser um criador de cultura. Pensemos nas primeiras imagens que os nossos antepassados criaram há milhares de anos nas paredes das grutas de Lascaux (França) ou Altamira (Espanha), com o fim de garantir a presença da sua passagem sobre o mundo. Aí vemos figuras humanas e míticas, masculinas e femininas, a fauna e a flora, em síntese, tudo aquilo que preocupava as primordiais inquietações do Homem primitivo. E, sobretudo, observamos um conjunto fascinante de mãos pintadas em vários tons e gradações que nos acenam, nos saúdam, nos apelam à contemplação reflexiva. E dizem-nos ainda que a História começa com a acção desses artistas originais que, passados milénios, nos oferecem o prazer de meditar sobre a importância das suas obras-primas.

 

Obra da artista húngara Vera Molnár, a grande pioneira do cruzamento entre as artes e a realidade virtual nos anos 60 (Imagem: Reprodução CNN)

 

No nosso século talvez a Inteligência Artificial queira igualmente transmitir a nós, humanos, a sua presença no mundo, a sua autonomia criadora, a sua razão histórica mais profunda. Os algoritmos que inventamos aprendem a uma velocidade impressionante conceitos e ideias complexas associados à nossa linguagem, hábitos e rituais, desejos, interesses, gostos e problemas. Os nossos computadores e telemóveis inteligentes conseguem armazenar enormes quantidades de dados e informações que lhes permitem ter um conhecimento mais avançado sobre nós próprios. São autênticos organismos tecnológicos que nos permitem superar as mais distintas dificuldades. Com a sua omnipresença e utilidade na vida contemporânea, a pergunta impõe-se: a Inteligência Artificial pode criar obras artísticas à semelhança dos seres humanos?

 

 

Esta interrogação tem apaixonado e inquietado os espíritos humanos. Na década de 60, a artista húngara Vera Molnár criou o primeiro programa de desenho computadorizado. Entre os anos 80 e 90, o artista britânico William Latham aplicou princípios genéticos e evolutivos em simuladores capazes de moldar formas escultóricas dispensando a supervisão humana. Mais recentemente, a conhecida plataforma de música Spotify – fundada em 2008 na Suécia – começou a estudar a possibilidade de introduzir tecnologia especializada em Inteligência Artificial para organizar listas de faixas musicais e, inclusivamente, música criada autonomamente por algoritmos inteligentes. Efectivamente, um colectivo artístico francês – chamado Obvious – levou ainda mais longe a possibilidade da criatividade integrar o código biológico destas máquinas criadoras. Com a máxima Criatividade não é apenas para humanos o grupo criou, recorrendo a um algoritmo de duas partes guiado pela Inteligência Artificial, uma série de 11 retratos de uma família aristocrática francesa fictícia, os Bellamy. O processo de criação é naturalmente complexo, conforme explicam os membros deste colectivo pioneiro:

 

«Nós alimentamos o sistema com um conjunto de dados sobre 15.000 retratos pintados entre os séculos XIV e XX. O Gerador cria uma nova imagem com base nesses dados e, em seguida, o Discriminador tenta identificar a diferença entre uma imagem criada pelo homem e outra criada pelo Gerador. O objetivo é [tentar] enganar o Discriminador para que ele pense que as novas imagens são retratos da vida real. Então temos um resultado».

 

Este método inovador já se revelou bem-sucedido. Tanto que a prestigiada leiloeira inglesa Christie’s já demonstrou interesse em leiloar um dos retratos produzidos pelo algoritmo dos Obvious – intitulado Portrait of Edmond de Belamy (Retrato de Edmond de Belamy) – cujas sessões de leilão serão realizadas entre os dias 23 e 25 de Outubro. Mas, ao que tudo indica, esta obra terá um valor aproximado de 7 mil a 10 mil dólares.

 

William Latham, artista e cientista britânico, um dos percursores nas décadas de 80 e 90 da aplicação de conhecimentos genéticos em simuladores inteligentes capazes de produzir autonomamente objectos artísticos (Imagem: Reprodução Goldsmiths)

 

Independentemente do que o futuro reserva à relação entre o ser humano e as máquinas inteligentes – a crescente autonomia, a fusão ou a suplantação – é praticamente certo que a imaginação, a criatividade, a sensibilidade e o génio continuarão a ser os valores que justificam a criação artística que permite dar um sentido à vida, à História e à cultura. Sejam essas qualidades essenciais humanas ou não. Porque, afinal, iremos continuar a querer dar um testemunho profundo da nossa existência durante o nosso tempo histórico.

 

PS: o autor deste artigo obedece às regras do antigo acordo ortográfico.      

 

 

 

 

 

 

1 Comentário

  1. João Cunha
    24 Setembro, 2018 às 15:37 — Responder

    Mas nós precisamos da inteligência artificial para quê mesmo?

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