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A biografia ficcionada de Moçambique

Leya

 

Licínio de Azevedo volta a brincar com a história e a exigir uma crítica ao Passado na sua mais recente obra, Comboio de sal e açúcar, que descreve o amor em tempos bélicos. O filme passa-se durante a Guerra Civil em Moçambique, nos anos 1980, logo após o período pós-independência retratado no longa-metragem Virgem Margarida, lançado em 2012.

 

Com quase 40 anos de vivência em Moçambique, o realizador brasileiro acompanhou de perto as mudanças por que o país passou. É com o olhar de quem viveu essas diferentes realidades, sem a condescendência e insensibilidade habitual dos realizadores que fazem filmes sobre as guerras em África, que ele consegue fazer o papel de historiador por meio da reinterpretação dos acontecimentos. De formação jornalística, Licínio inspira-se em fatos reais, exigindo um sentido crítico do espectador de hoje ao olhar para a sociedade de ontem. Sai do político para o humano e do idealismo para o realismo.

 

Ao lado de Ruy Guerra e Jean-Luc Godard, Licínio de Azevedo fez parte da geração que começou o cinema em Moçambique. O regime socialista investiu na sétima arte para criar uma identidade forte e um sentido de pertença comum aos moçambicanos. O interesse político no cinema é essa herança dos anos 1970, quando o cinema tinha o objetivo de servir para a unificação do país.

 

Os filmes de ficção de Licínio têm um sólido componente documental. É nesse espaço de negociação entre a História e a Arte que o realizador conta a verdade, reinventando-a. Virgem Margarida retrata a euforia da época pós-independência, num Moçambique revolucionário imerso num regime socialista uni-partidário.

 

Baseado em fatos reais, o filme recria a história de uma virgem que, uma vez em Maputo para comprar enxoval, é presa por circular sem identificação e enviada, com as prostitutas da cidade, para um campo de reeducação no interior do país. Os campos de reeducação tinham como objetivo concretizar o ideal do “Homem Novo”, por meio do isolamento e treino militar rígido. A ideia era transformar as prostitutas em mulheres úteis para a edificação de um Moçambique próspero.

 

Em Virgem Margarida, o cineasta evidencia os contrastes entre as vivências dos dois grupos de mulheres e das estruturas militares para perspetivar o projeto da “Mulher Nova”.

 

De um lado, temos as mulheres da cidade, deslumbradas com a vida em bares e discotecas, muitas até dispostas a trocar sexo por dinheiro; do outro, as mulheres do campo, comprometidas com a luta e a construção de uma nova realidade social no país.

 

Deste modo, as supostas prostitutas são um símbolo da decadência de valores e do sucesso do projeto imperialista europeu em África, isto é, um eco da colonização portuguesa, enquanto as guerrilheiras representam o ideal de Mulher Nova no Moçambique pós-independência.

 

O campo de reeducação é a plataforma de encontro onde os dois grupos negociam uma mulher intermediária. As guerrilheiras colhem das prostitutas a rebeldia e coragem para se libertarem da rígida estrutura militar, e as prostitutas ganham consciência política e um novo apreço pelo modelo tradicional de mulher.

 

Nos dramas e vivências do dia-a-dia nos campos, as mulheres de ambos os grupos acabam por encontrar aspetos comuns que as unem e fortificam. Explorando questões de gênero, de sexualidade e de poder no processo revolucionário, Licínio convida o espectador a participar da trama, umas vezes para punir, outras para perdoar. Torna-se clara a inevitabilidade da corrupção do processo pela própria natureza humana e pelas condições de poder absoluto em que muitos militares atuavam.

 

Dando continuidade à biografia de Moçambique, o autor explora em Comboio de sal e açúcar os mesmos temas, mas numa época diferente e com uma lente mais exigente.

(Imagem: Divulgação)
(Imagem: Divulgação)

O filme retrata o trajeto de mais de 400 km de sangue e lágrimas, de Nampula para o Malawi, onde muitas pessoas trocavam o sal pelo precioso e escasso açúcar. Numa viagem perigosa e imprevisível, devido aos ataques da guerrilha que contestava o regime de então, somos arrastados pelas marés de susto, pânico e medo sempre que há uma ameaça de perigo.

 

A banda sonora original, marcada por sons fortes de repercussão, nos coloca nos vagões que levavam os moçambicanos para o Malawi. As instrumentais marcadas pelo batucar dos tambores simulam o galopar dos carris sobre o trilho. E, ao mesmo tempo, definem o ritmo da própria viagem, interrompidos uma vez pelo som de uma explosão ou uma bala, outras pelas travagens bruscas da locomotiva.

 

Os planos das paisagens misteriosas da mata densa e serrada do Norte de Moçambique acompanham os tambores, ora interrompidas por planos de corte sobre aldeias totalmente devastadas, ora por planos sobre elementos naturais que se vão revelando paulatinamente ao longo da narrativa. Este jogo entre o som e a imagem adiciona um elemento de misticismo em que o real e o mágico misturam-se, uma marca importante do cinema de Licínio de Azevedo.

(Imagem: Divulgação)
(Imagem: Divulgação)

Na guerra de Licínio, os mitos coexistem com os factos. A criação desse mundo fantástico paralelo tem muita herança da tradição oral local e das próprias especificidades da vida em guerra, regida por valores e justiças distintas. Há também um exercício de prática de espiritualidade, contribuindo mais uma vez para definir o tom do mistério e suspense. Isso manifesta-se em três personagens distintos: Omar, com as leituras ao Alcorão; o maquinista com as orações católicas, e o Comandante Sete Maneiras, com as crenças tradicionais. Esta tríade completa as Escolas Teológicas para onde os moçambicanos apelam em situações de vulnerabilidade.

 

É em triangulação que o comboio encontra pontos de equilíbrio para não corromper o poder. Um exemplo disso é o trio Tenente Salomão, Tenente Taiá e Comandante Sete Maneiras. O primeiro é machista, violento e desonesto, enquanto o segundo tem uma linha mais consciente, de estratégia e ideologia. O terceiro surge como juiz, encontrando sempre o meio-termo entre as duas abordagens dos seus tenentes.

 

O comboio é uma metáfora para o caminho que temos de percorrer na vida e os obstáculos que somos obrigados a enfrentar para chegar ao nosso destino. Cruzam-se histórias e motivos distintos que levam pessoas de várias proveniências a arriscar a vida na viagem.

 

Naquela que para mim é das melhores cenas do cinema moçambicano recente, uma mulher grávida, Amélia, dá à luz no meio de um ataque cercada por mulheres que a ajudam e encorajam enquanto os homens, escondidos atrás das armas, combatem com fúria o grupo armado que os persegue.

 

O desencadear dos acontecimentos dentro e fora da locomotiva torna a guerra cada vez mais urgente. As cenas são mais curtas e com mais ação. Em Virgem Margarida é a falta de acontecimentos que cria a tensão no grupo. Há um clima de ansiedade constante que vai aumentando até alcançar o ponto de ebulição, momento em que surge uma oportunidade para colocar fim à dura realidade da vida no campo de reeducação.

 

Em ambos, o cineasta leva-nos a questionar a legitimidade dos processos revolucionários e os ideais dos homens por detrás das armas e talvez até a perdoá-los. Tenente Salomão de Comboio é o exemplo perfeito disso, na qualidade de militar que usa do seu poder para fins ilícitos e, no entanto, é também quem está sempre à procura do inimigo e disposto a matar (e morrer) para vencê-lo.

 

É nesse sentido que Comboio ultrapassa Virgem Margarida: sua dimensão emocional é mais completa. No intervalo entre os dois filmes, a própria história do país mudou. A euforia e idealismo da independência já desapareceram e deram espaço para interesses individuais se sobreporem às ideias revolucionárias. Essa mudança reflete-se no ritmo distinto entre os dois filmes.

(Imagem: Divulgação)
(Imagem: Divulgação)

Nas palavras de Licínio, o maior inimigo é o Homem e a sua própria pequenez face aos objetivos que se propõe a cumprir. O lado humano dos processos revolucionários e a contradição dos grandes ideais que se transformaram, na verdade, em grandes tragédias, pois as pessoas que os dirigem são mais fracas que eles. É uma crítica ao passado que não procura culpados, mas antes tenta enquadrar os acontecimentos no seu tempo e espaço.

 

As visões idealistas retratadas em ambos filmes procuram devolver aos dois lados a sua humanidade. A partir de personagens multidimensionais e do cruzamento das suas narrativas, Licínio consegue produzir tragédias gregas com a medida certa de loucura e humor para escapar à tristeza e piedade. Num preciso trabalho de equilibrista, o realizador traz o cinema para a construção da memória coletiva, baseando-se na riqueza cultural e especificidades de Moçambique, sem perder a universalidade de sentimentos como a saudade, o medo e a esperança.

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