Sociedade

Bonecas Abayomi: por que a origem romantizada dura mais?

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Abayomi é o nome dado às bonecas de tecido negro, feitas sem cola, sem costura, sem olhos, sem estrutura interna e sem detalhes — apenas com nós, dobraduras e cortes — ou rasgos. O formato humano — tendo muito mais comumente a mulher como referência — é envolvido com tecidos coloridos que formam os seus vestidos, cintos e turbantes, fazendo, cada vez mais, sucesso no Brasil.

 

A história corrente da Abayomi — que não é verdadeira, segundo a criadora da boneca, Lena Martins — remonta à época da escravidão no país. Conta-se que, nos navios negreiros, as mães as faziam para seus filhos com os retalhos de suas roupas, as quais rasgavam à unha na esperança de os acalentar naqueles momentos dolorosos em que viviam. Por isso, as bonecas são associadas à resistência, ao amor de mãe, à proteção. Não teriam traços faciais por terem o intuito de abarcar todas as etnias trazidas escravas pelos colonizadores, o que traz o ideal de inclusão, de coletividade, de força conjunta.

 

Mas os indícios dizem que essa história não é uma história real.

Abayomi Lena Martins
Muitos procuram Lena Martins para aprender a fazer as pequenas bonecas Abayomi. Imagem: Lena Martins

Sem indícios históricos

“É possível, mas não há indícios históricos que mostrem que as mães faziam qualquer coisa do tipo nos navios negreiros. Inclusive, na maior parte das vezes, mães e filhos eram separados e os filhos ficavam para trás, porque crianças muito pequenas não eram rentáveis. Quando eram trazidas, as crianças já tinham por volta dos 8 anos, constituindo força de trabalho. Essas, sim, eram até mesmo procuradas”, afirmou o historiador Marcelo.

 

Segundo o especialista, havia a preferência pela importação de escravos jovens e crianças por causa da diferença de preço — pagava-se mais barato por crianças — pela expectativa de vida — quanto mais jovem, mais tempo a trabalhar — e pela crença de que os negros nascidos no Brasil eram mais rebeldes e desobedientes do que os vindos diretamente da África. Mas destaca que há poucos relatos dos séculos XVI e XVII. Os registros tornaram-se mais abundantes após a ida da família real portuguesa para o Brasil, em 1808.

Lena Martins, em entrevista sobre Abayomi no CULTNE na TV. Imagem: CULTNE na TV

Lena Martins, a criadora

A verdade é que essas bonecas surgiram no Brasil, na década de 1980, pelas mãos da artesã maranhense Lena Martins. Militante do Movimento das Mulheres Negras à época, Lena teve inspiração na mãe — costureira que fazia bonecas tradicionais — para trabalhar com a temática.

 

Em oficinas que fazia em comunidades do Rio de Janeiro — inclusive nos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), projeto educacional para oferecer ensino público integral —, Lena começou a utilizar retalhos para formar bonecas e, depois de tempos aperfeiçoando, criou o que hoje é conhecido como Abayomi. A ideia de usar retalhos — lixo — para fazer uma coisa nova — boneca — é condizente com uma visão cíclica da vida, a de que todo fim é um novo começo.

 

“Essa coisa que se fala, de ter surgido em navio negreiro, eu não sei direito como falar sobre isso”, afirmou Lena Martins. “Eu tenho pensado bastante. Eu fico achando que nas nossas narrativas, de negros e descendentes, sempre tem uma interferência. Parece que não temos o direito de ter uma boneca que nos represente, mas que tenha nascido no período de maior efervescência dos movimentos sociais no Rio de Janeiro, no final dos anos 1980. Não sei de onde vem essa história de navio”, completou.

 

Lena questiona que, se fosse verdade, grandes pesquisadores como Câmara Cascudo provavelmente já teriam feito menções à Abayomi. “De uns 15 anos para cá é que essa história ganhou uma proporção enorme, as pessoas adotaram essa história, se encantam e replicam”.

As bonecas Abayomi são feitas com seis nós. Imagem: EBC

A artesã esclarece que seu trabalho passou a ter maior expressão após fazer as bonecas, mas que o contexto da boneca é outro, não tão antigo. “Eu estava no Movimento de Mulheres Negras. Foi quando teve o primeiro encontro nacional de mulheres negras . Foi o período também da marcha que discutia os 100 anos de abolição [da escravatura]. Era dentro desse contexto que eu vivia. E a Abayomi tem esse contexto, um contexto criativo, de abertura, em que os movimentos eram mais potentes nas ações e os negros estavam finalmente conquistando espaços”. O nome Abayomi veio em homenagem a uma amiga grávida que queria colocar o nome de sua filha de Abayomi. Como nasceu menino, o nome Abayomi foi para a boneca.

 

Depois, ao lado de outras mulheres, criou uma Associação no Rio de Janeiro chamada Coop Abayomi, que durou dezesseis anos. Juntas, realizavam exposições, trabalhos em centros culturais, escolas, faziam teatro e apresentações voltadas para a cultura popular e o universo que envolvia a Abayomi.

 

“Acho que criar outros mitos de origem, trazer para um passado mais distante, talvez seja uma necessidade. Mas eu não sei falar sobre isso, não sou antropóloga, sou artesã”, disse. “Eu vou seguindo minha história. Acho que existem muitas histórias a respeito de tudo, cada um pega uma interpretação que está mais de acordo com aquilo que acredita e, assim, vai se identificando e vai seguindo a vida”.

 

Para Rezende, a distorção histórica pode deslegitimar algumas pautas do movimento negro. “É importante lutar para o reconhecimento da história e cultura negra como ela realmente é, como parte constituinte da cultura brasileira. Há imensos símbolos ancestrais africanos, pode-se trazê-los e valorizá-los. E, se outros novos surgirem, melhor, é mais espaço conquistado”. O historiador defende que se articulem medidas que promovam a igualdade racial, como políticas de cotas e a implementação da Lei 10.639/03, que institui o ensino da História Africana nas escolas brasileiras.

A Abayomi hoje

“Já não tenho muito pique para fazer tanta boneca como fazia antigamente. Agora tenho que ser mais moderada. Atualmente estou curtindo muito fazer cenas com bonecas e fotografar. Pode ser uma família sob uma árvore, num piquenique. Tudo que se possa imaginar que acontece nesse mundo eu posso fazer com bonecas, pensando em ocupar os espaços de pertencimento que são negados aos negros e descendentes”, ressaltou Lena.

 

A artesã, que tem obras quase em tamanho real, lembra que muitas pessoas a procuram para aprender unicamente como fazer a pequena boneca, que é rápida e fácil. Já pelo trabalho duro, da construção de grandes bonecas, quase ninguém se interessa. Como a Coop Abayomi se desfez ao longo do tempo, Lena faz parcerias esporádicas para divulgar e ensinar seu trabalho. “Minha forma de ser ativista é com meu trabalho, é fazer arte com o que a vida oferece. É de alguma forma estar fortalecendo nossa autoestima de povo negro e descendente”.

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