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E se nos debruçássemos mais sobre os direitos da criança?

(Imagem: Reprodução Radilson Gomes, Revista Radis)

É comum ouvir que os mais afetados pelos problemas sociopolíticos de um país são as crianças, mas talvez não paremos para refletir sobre essa questão. Elas precisam de um Estado organizado que tem, nas suas prioridades de governação, questões ligadas ao respeito dos seus direitos fundamentais. Não é por acaso que nos países desenvolvidos os setores prioritários são os da educação, saúde e bem-estar das crianças como garantia do futuro, e isto não é nenhuma novidade. Por outro lado, na Guiné-Bissau, país no qual a situação da infância ainda é bastante lamentável, parece que andamos a dormir.

É bonito celebrar o dia da criança, publicar artigos e fotos dramáticas de crianças famintas e nuas, fazer comentários que refletem até uma certa revolta, mas já estamos tão habituados a isso que é mais uma situação lamentável para falar nos convívios de amigos ou até numa pausa-café dos nossos locais de trabalho.

No caso concreto da Guiné-Bissau, por mais esforços que se possa fazer no setor não-governamental, com base em programas comuns liderados ou monitorizados pelo próprio Governo, e ainda que haja pequenos progressos que se façam provar pelas estatísticas recentes como as do Relatório Preliminar MICS 2014, quando contemplamos a nossa realidade no quadro mundial, por exemplo, através do Relatório da Situação Mundial da Infância (2014) continuamos a figurar entre os últimos do ranking.

Passando um pente fino sobre a situação da infância no nosso país, deparamo-nos com dados que nos chamam a atenção para a urgência de levar a cabo intervenções ainda mais eficazes para a proteção dos seus direitos fundamentais, tendo a CDC completado 25 anos, no ano passado. A cooperação internacional nos mais diversos moldes e tipos de abordagem – umas talvez mais adaptadas à nossa realidade do que outras – têm reiterado, através de convénios com o Governo, mesmo nos períodos de maior instabilidade, compromissos internacionalmente assumidos com vista a melhorar a situação das crianças da Guiné-Bissau.

Temos vários exemplos como o UNICEF, a PLAN, a Cáritas Guiné-Bissau, a FEC e diversas instituições internacionais a operar no país no setor dos direitos da criança em parceria com o IMC, a AMIC e tantas outras instituições baseadas nas comunidades. Mais poder-se-ia ter feito se nos últimos 17 anos, se o país não tivesse assistido aos mais diversos episódios que adiaram processos importantes para o desenvolvimento da infância.

Dados recentes do Relatório preliminar do MICS 2014 ainda apontam para uma elevada taxa de mortalidade infanto-juvenil, ou seja, oitenta e nove em cada mil crianças nascidas vivas têm a probabilidade de falecer antes de completarem os cinco anos de idade, e tudo isso devido aos vários comportamentos de risco e da ineficácia dos serviços públicos de saúde e saneamento básico. O Paludismo continua a ser a maior causa desta mortalidade seguido de doenças diarreicas, infeções pulmonares e o sarampo. Mas já houve uma excelente resposta: o tratamento da malária passou a ser gratuito na Guiné-Bissau.

Passando para a educação vimos que é mais do que uma prioridade; é uma emergência. Não é possível uma criança desenvolver as suas capacidades intelectuais quando, ainda segundo o Relatório preliminar do MICS 2014, 0,5% delas vive num agregado familiar que possui três ou mais livros infantis, e apenas 20% delas chega a frequentar o ensino secundário ou superior. Se falarmos na questão do género nas escolas, deparamo-nos com uma preocupação ainda maior quanto ao índice de paridade de género no Ensino Primário, que é de apenas 1%.

Na área da Proteção, apenas cerca de 23% das crianças existem legalmente, ou seja, são registadas, o que as torna ainda mais vulneráveis a situações como o tráfico, 51% delas estão envolvidas no trabalho infantil e mais de 80% são atualmente vítimas de vários tipos de violência física ou psicológica. As raparigas continuam a ser vítimas do casamento precoce e basta olharmos para os números que apontam para quase 60% de raparigas entre os 15 e 19 anos casadas com homens pelo menos 10 anos mais velhos e sem o seu consentimento. É inaceitável que cerca de quarenta e cinco porcento das meninas sejam genitalmente mutiladas e sofrerem outros tipos de violação à sua integridade física e psicológica.

As estatísticas dão apenas uma estimativa, mas precisamos delas para nos posicionarmos com ações concretas e concertadas para evitar duplicações e sermos mais eficazes. A monitorização, o seguimento e a avaliação das ações levadas a cabo por vários atores nos setores-chave dos direitos da criança devem ser consolidados. Sobre o compromisso com as crianças guineenses, que todos nós temos, há muito que se lhe diga. A responsabilidade é de todos e parece-me que quanto a isso não há dúvida. Mas também não resta a menor dúvida de que há muito trabalho pela frente e não há tempo a perder. Que diremos pois, quando nos depararmos com indicadores tão preocupantes relativamente ao cumprimento dos seus direitos? Talvez aí obtenhamos a resposta, que se deve traduzir, claramente, numa ação conjunta e substancial.

Ao nível das diversas abordagens teóricas desenvolvimentistas – algumas que há muito tempo vêm sendo postas em causa pela sua ineficiência – talvez a resposta seja clara. Para além disso, foram criados e existem instrumentos legais internacionais ratificados pelo Estado Guineense e inúmeras estratégias desenvolvidas e levadas a cabo por diversos atores tanto a nível macro, como a nível meso e micro. Mas é bom voltar a salientar que as instituições não-governamentais pouco poderão fazer em certos setores sem uma contrapartida prática e eficiente por parte das instituições públicas vocacionadas. Para uma cooperação mais eficiente, o diagnóstico do país deve ser feito pelos órgãos competentes de soberania.

A Comunicação para o Desenvolvimento

O papel da comunicação para o desenvolvimento está muito além de apenas elaborar estratégias sem conhecer a fundo as diferentes realidades socio-culturais das comunidades e adequar a abordagem no apelo à mudança. As ações de mobilização social devem ser bem estudadas e adaptadas à diversidade cultural do país. Cada grupo- alvo tem suas especificidades e barreiras sociais ou antropológicas que o prendem a vários comportamentos de risco.

As ações e os meios de comunicação utilizados, muitas vezes, não são apropriados. Um exemplo prático é utilizar cartazes com muita informação escrita numa comunidade que não sabe ler, ou um spot radiofónico quando o meio mais eficaz seria através da mobilização prévia de um membro influente da comunidade. Cabe ao Estado criar gabinetes competentes e especializados de comunicação para seguir e avaliar métodos de comunicação utilizados para as campanhas de mobilização social. Fatores de identificação – linguísticos ou culturais – devem ser reconhecidos, enumerados e avaliados antes de serem levados a cabo, aumentando o seu grau de eficácia.

Em certas culturas locais, a noção do ‘direito a ser criança’ não existe. A partir de uma certa idade, a criança pode trabalhar, casar, cuidar dos irmãos mais novos e não se mudam estes comportamentos com spots radiofónicos. Cada caso deve ser devidamente avaliado e o modo de intervenção minuciosamente estudado, antes de escolher o método. Caso contrário, vamos continuar a gastar milhões em camisolas, dísticos e cartazes que não causam mudanças.

Olhar para as crianças é claramente olhar para o futuro. Dar as mãos pelas crianças é claramente garantir o futuro de toda uma nação. Não há magia, nem ‘mesinho’ mais eficaz para o desenvolvimento sustentável de um país do que investir nas crianças. Investir na sua educação, na sua saúde, na sua alimentação, o seu bem-estar e sua proteção é investir no país ao mais alto nível. Mas este investimento requer uma concertação contínua entre todos os atores que labutam para que a situação da infância na Guiné-Bissau seja a do sonho de todos pelo respeito dos seus direitos.

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