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O tempo não para: o Brasil 25 anos depois de Cazuza

(Imagem: Reprodução Folha Noroeste)

Não conheci Cazuza a tempo. Não tive a oportunidade de ir ao show de 1985 do Rock in Rio. Foi ouvindo as músicas roubadas dos irmãos mais velhos que tomei conhecimento da Vida Louca deste que foi um dos maiores nomes da música brasileira na década de 80. Não lembro de ter acompanhado, no auge dos meus três ou quatro anos de idade, a cobertura midiática que mostrou Cazuza definhar sob os holofotes (em abril de 1989, a Revista Veja publicou uma entrevista com o cantor e uma foto dele numa capa de gosto duvidável, que apresentava o compositor como “uma vítima da aids que agoniza em praça pública”).


“Disparo contra o sol
Sou forte, sou por acaso
Minha metralhadora cheia de mágoas
Eu sou um cara
Cansado de correr
Na direção contrária
Sem pódio de chegada ou beijo de namorada
Eu sou mais um cara”


Mas Cazuza não foi “por acaso”, como diz na letra da música que intitula este artigo. Viveu intensamente seus 32 anos. Cazuza morreu em 7 de julho de 1990, por complicações decorrentes da aids, mas a sua obra é duradoura: as músicas continuam tão fortes quanto há 25 anos e as suas letras ainda se mostram atuais.

A canção foi título do último registro ao vivo do cantor. O álbum O Tempo Não Para foi gravado na turnê do disco Ideologia, no fim dos anos 80. Em intensos nove anos de carreira entre a parceria com o Barão Vermelho e um curto período a solo, Cazuza transformou-se num dos mais relevantes cantores e compositores da geração pop projetada no Brasil ao longo dos anos 1980.

– Ele nos toca até hoje, porque o que disse ali ainda significa muito. O que falou em O Tempo não Pára, em 1989, serve para hoje, porque o Brasil não mudou. Os princípios tortos do país continuam aí – afirmou em entrevista à edição de junho da revista Rolling Stone, Ney Matogrosso, que foi namorado, intérprete e confidente de Cazuza.

(Imagem: Reprodução Folha Noroeste)
(Imagem: Reprodução Folha Noroeste)

Em entrevista ao Jornal da Tarde, no dia 04 de março de 1988, Cazuza falou abertamente sobre a mudança pela qual suas composições passaram: de letras mais introspectivas, autobiográficas até, no início da carreira, para canções mais políticas e que discutiam uma ideologia e a situação do país nos últimos tempos.

– Eu achava que não podia falar sobre política, por não ser uma pessoa política. Eu tinha muito preconceito em falar no plural, achava que só falava bem do meu mundinho. Isso começou a mudar quando fiz a letra de Um trem pras Estrelas, com a música do Gil, a partir do roteiro do filme de Cacá Diegues. Depois conversando com mil pessoas, inclusive Gil, pensei por que não mostrar a minha visão, por mais ingênua que ela seja? Não sei quanto é a dívida externa, qual é o rombo das estatais… não estou por dentro destas coisas, tenho uma visão romântica, mas a maioria da população também deve ter uma visão ingênua, então por que não me posicionar? – explicou.

Cantada em primeira pessoa, O Tempo Não Para fala sobre a luta individual dele e do povo brasileiro, da situação social que era imposta no Brasil e o que apontava o seu próximo trabalho, “Burguesia”. Os versos registram a sina dos indignados com a resistência do que contradizem a maré imposta pelo algoz que não é nomeado na letra.


“Mas se você achar
Que eu tô derrotado
Saiba que ainda estão rolando os dados
Porque o tempo, o tempo não para”


A música data de uma época em que o país passava por profundas transformações. As eleições de 1989 foram as primeiras desde 1960 em que os cidadãos brasileiros aptos a votar escolheram seu presidente da república (Tancredo Neves foi o primeiro presidente brasileiro após 21 anos de ditadura no país, eleito em 1985 por um Colégio Eleitoral).

Esse sentimento foi registrado numa entrevista, para Sonia Maria, em Março de 1989, para a Revista Bizz.

– Tinha aquele clima de euforia, as pessoas querendo acreditar novamente que tudo vai mudar, que pode mudar… Tanto que eu considero Ideologia, Brasil, e O tempo não para uma trilogia de esperança… Eu nunca tive medo de falar quando eu estava de baixo astral. Acho que a gente não pode ficar ‘tudo bem’ o tempo todo: o mundo é ruim, as pessoas são ruins, o mal sempre vence, então tem esse lado forte. Mas agora estou numas da corrente do bem. Tô nessa e acho genial. Tudo bem: o mal tá lá, as pessoas ruins estão lá, pessoas mesquinhas, mas não vão me atrapalhar mais. Não vou mais sofrer por causa delas.

Na letra, sentimento de libertação e de justiça social mesclam-se com a denúncia do preconceito e da corrupção do país.


“Nas noites de frio é melhor nem nascer
Nas de calor, se escolhe: é matar ou morrer
E assim nos tornamos brasileiros
Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro
Transformam o país inteiro num puteiro
Pois assim se ganha mais dinheiro

A tua piscina tá cheia de ratos
Tuas ideias não correspondem aos fatos
O tempo não para”


Voltando a 2015, a corrupção desponta como o grande problema da política brasileira. A juventude mais informada agora é já mais ativa (ainda que o ativismo no Facebook seja em algumas situações maior do que nas ruas). Centenas de milhares de pessoas tomaram as ruas no início deste ano pedindo punições à presidente Dilma em protestos que se espalharam pelo país. Ironicamente, segundo dados do Datafolha, este foi o maior protesto político no país desde as Diretas-Já, em 1984, movimento que teve grande importância na redemocratização do país.

De fato, o tempo não para. E, 25 anos depois, o Brasil se encontra novamente num momento delicado.


“Eu não tenho data pra comemorar
Às vezes os meus dias são de par em par
Procurando agulha num palheiro”


Em 30 anos da democracia brasileira (completados em março deste ano), os avanços são evidentes: o processo eleitoral é confiável, a liberdade de expressão e manifestação aumentou, a economia hoje tem mais estabilidade do que no passado e a pobreza vem recuando.

No entanto, cientistas políticos apontam diferentes fatores que reduzem a qualidade do regime democrático brasileiro, como o poder limitado da população de monitorar e influenciar as decisões do governo, a corrupção elevada e a desigualdade social ainda alta, que limita os direitos de parte da população.

– A nossa democracia ainda é muito pouco democrática – afirmou Marcos Nobre, professor de filosofia da Unicamp, em entrevista à BBC Brasil.

O país foi classificado num índice da qualidade de democracia da consutoria britânica Economist Intelligence Unit (EIU) como o 44º país mais democrático entre 167 nações analisadas. Com essa posição, o Brasil está no grupo das “democracias imperfeitas”. Segundo a EIU, nos países que recebem essa classificação há eleições livres e justas e as liberdades civis básicas são respeitadas (como liberdade de expressão e religiosa). Por outro lado, costuma haver problemas de governança (como corrupção e pouca transparência em órgãos públicos) e baixos níveis de participação política.

Pra o filósofo Vladmir Safatle, professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo) e colunista do jornal Folha de S.Paulo, nem mesmo durante a ditadura houve uma depressão sociocultural como a atual, e as manifestações populares são um sinal do esgotamento nunca antes visto do modelo político – um problema que vai além da corrupção e a crise de representatividade.

– Trocar o PT por outro partido não muda nada. É como trazer Dunga de volta à seleção brasileira após a derrota na Copa. Continuamos aprisionados ao processo – afirmou em entrevista ao UOL Notícias.

Mergulhada na maior crise política e econômica desde sua chegada ao poder, a presidente Dilma Rousseff enfrenta atualmente uma reprovação recorde por parte da população, a piora nos índices de economia e um Congresso hostil.

Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, Dilma hoje é aprovada por 10% da população, índice mais baixo desde os 9% obtidos por Fernando Collor de Mello às vésperas do impeachment.

O desemprego atingiu os 7,9% no país, maior patamar dos últimos dois anos. No Congresso, a presidente viu pautas com as quais discorda avançarem no Legislativo, como a redução da maioridade penal no país.

E então, seguem ou não atuais os versos do poeta?


“Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades
O tempo não para”


O Tempo Não Para

Disparo contra o sol
Sou forte, sou por acaso
Minha metralhadora cheia de mágoas
Eu sou um cara
Cansado de correr
Na direção contrária
Sem pódio de chegada ou beijo de namorada
Eu sou mais um cara

Mas se você achar
Que eu tô derrotado
Saiba que ainda estão rolando os dados
Porque o tempo, o tempo não para

Dias sim, dias não
Eu vou sobrevivendo sem um arranhão
Da caridade de quem me detesta

A tua piscina tá cheia de ratos
Tuas ideias não correspondem aos fatos
O tempo não para

Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades
O tempo não para
Não para, não, não para

Eu não tenho data pra comemorar
Às vezes os meus dias são de par em par
Procurando agulha num palheiro

Nas noites de frio é melhor nem nascer
Nas de calor, se escolhe: é matar ou morrer
E assim nos tornamos brasileiros
Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro
Transformam o país inteiro num puteiro
Pois assim se ganha mais dinheiro

A tua piscina tá cheia de ratos
Tuas ideias não correspondem aos fatos
O tempo não para

Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades
O tempo não para
Não para, não, não para

Dias sim, dias não
Eu vou sobrevivendo sem um arranhão
Da caridade de quem me detesta

A tua piscina tá cheia de ratos
Tuas ideias não correspondem aos fatos
O tempo não para

Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades
O tempo não pára
Não para, não, não para

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