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Ouro que se quer, ouro que se perde

No início do ano, a Hasbro quis mudar a forma de como um jogo era desfrutado desde há 11 anos. O público revidou e ganhou a batalha, obrigando a empresa norte-americana a repensar a abordagem. Agora, os fãs festejam, enquanto a marca tenta recuperar a confiança perdida

 

Inúmeros são os mitos e as histórias sobre entidades que querem mais do que lhes é devido. Que perderam tudo na busca de cada vez mais. Histórias como esta, com a eventual vitória dos heróis aquando da batalha final com o vilão são comuns em jogos como Dungeons and Dragons. Mas nunca a comunidade achou que o grande vilão de todo um drama, que aconteceu no início de 2023, fosse o aliado mais fiel da comunidade. Esta é a história de como a Hasbro, assim como a sua subsidiada Wizards of The Coast, que detém os direitos da marca Dungeons and Dragons, conseguiu colocar toda a comunidade contra si.

Como em qualquer aventura que se preze, primeiro é necessário um flashback ao passado. Em 1974, Gary Gygax, juntamente com Dave Arneson, ambos inspirados pela escrita de Tolkien, criam um sistema de jogo em que jogadores poderiam criar as suas próprias personagens, em folha e papel, e viver uma aventura num mundo de fantasia criado por um outro jogador, o chamado Mestre. Em 1997, a companhia Wizards of The Coast (referida no resto do texto apenas como “WoTC”) comprou os direitos do jogo, sendo esta comprada em 1999 pela Hasbro. No ano de 2000, é lançada a 3ª edição do jogo, onde é introduzida a Open Game License, ou OGL, uma licença onde, muito resumidamente, a Hasbro permitia a criadores de fora criarem, e venderem, conteúdo para esta edição de D&D, sem necessidade de pagar royalties pela propriedade intelectual usada.

Após vários anos e algumas edições, a 5ª edição d’ “o melhor RPG de mesa do mundo”, como a Hasbro se referiu a D&D nos seus livros, foi lançada. Estando ainda sob a OGL original, esta edição permitiu o crescimento da base de jogadores e, principalmente, de criadores de conteúdo para o jogo. Esta é a era de ouro de streamers de D&D, de criadores de livros, de desenhadores, de músicos e, no fundo, de jogadores em todo o mundo. Grandes companhias, como Critical Role e Dimension 20, com milhares, senão milhões, de seguidores, trazem, todos os dias, centenas de novos jogadores para o hobby. Kobold Press, outra companhia que fazia uso da licença, já produziu mais de 200 módulos para o jogo, como livros e pdfs de conteúdo adicional. Neste mesmo tempo, a WoTC criou apenas quase 80 módulos para o jogo.

 

Imagem Freepik

 

Luta dos jogadores contra titãs

 

Foi assim 11 durante anos. Anos de histórias e de liberdade criativa. A única coisa que fez a popularidade de D&D crescer de forma exponencial foi o facto de a OGL autorizar a criação de conteúdo, com as mecânicas base do jogo. Toda esta estratégia veio a ser posta em causa no início de janeiro de 2023, quando o maior aliado da comunidade se revelou ser o grande antagonista da história, tentando mudar a forma como o jogo era apreciado para sempre.

A empresa WoTC tentou, de uma forma secreta, para que o público em geral de nada soubesse, fazer passar uma mudança à OGL, pedindo aos maiores criadores de conteúdo de D&D que aceitassem com secretismo. Um criador de conteúdo da comunidade, Gizmodo, conseguiu dar revelar o contrato, onde, entre outras coisas, se previa a permissão à empresa do uso de todo o conteúdo criado sob a OGL 1.0a, sem pagar royalties, para quaisquer propósitos que quisesse. Também previa o cancelamento da antiga OGL para que todos os criadores tivessem de criar debaixo da nova licença, tendo de pagar à empresa pelo produto criado. Pagar por querer dar à comunidade mais conteúdo.

A partir do momento em que estas imagens foram publicadas, uma reação em massa contra a Hasbro e a WoTC, maioritariamente vinda de países onde o jogo está mais fixo nas comunidades, como os EUA e Inglaterra, foi rapidamente iniciada. Numa questão de horas, a #OpenDnD ficou na página de trending do Twitter, com milhares de tweets por hora a manifestarem-se contra esta ação das companhias.

A mudança não afetaria só Dungeons and Dragons, mas atingiria todos os jogos criados com a OGL, como Pathfinder, o principal rival de D&D no mercado, e Ordem Paranormal, um jogo da autoria do brasileiro Rafael Lange, possível apenas por causa da licença, embora a reação da comunidade deste último não tenha sido tão avassaladora como seria de esperar. Segundo André Oliveira, estudante no Instituto de Artes Visuais, Design e Marketing, ou IADE, do curso de Animação e Criação Visual, e jogador assíduo de D&D e de Ordem Paranormal, “devido ao facto de o jogo ser brasileiro e de não haver tanto conhecimento sobre o que se passava, não houve tanta adesão, embora algumas pessoas tenham sabido e protestado”. Como afirma: “Acho que fui a primeira pessoa da comunidade do ‘Ordem’ que publicou alguma coisa nas redes sociais a tomar iniciativa e a falar sobre isso [no Twitter].”

Com esta mudança em mente, assim como a oportunidade de mercado que se apresentava e a falta de confiança na WoTC, várias companhias começaram a desenvolver os seus próprios sistemas de jogo, não usando a OGL e criando, de raiz, os sistemas inteiros. A Kobold Press iniciou, nos primeiros dias de polémica, a criação de um sistema, sob o nome de código “Project: Black Flag”, enquanto que Critical Role criou dois sistemas, denominados de “Illuminated Worlds” e de “Daggerheart”. Ambas as iniciativas tiveram uma gigantesca adesão, estando os dois ainda em desenvolvimento. Sendo que Critical Role atrai tantos jogadores e a Kobold Press mantém o interesse no jogo, proporcionando conteúdo novo, está no interesse da WoTC continuar com estas empresas a jogar o seu jogo. A possibilidade de perder todos os novos jogadores, proporcionados por empresas como essas, poderia – e pode ainda – vir a traduzir-se em prejuízo para a Hasbro.

Devido ao cancelamento de subscrições dos seus serviços e do decréscimo nas compras dos seus produtos, a Hasbro desistiu da ideia e manteve a antiga OGL como estava, numa desesperada tentativa de voltar a ganhar o amor e a confiança dos clientes e jogadores. Informações mais detalhadas sobre esta licença, assim como as mudanças a ela propostas podem ser encontradas na notícia «Dungeons & Dragons’ New License Tightens Its Grip on Competition», por Linda Codega.

 

A reação do mercado Portugal à polémica

Tudo isto se passou há pouco mais de cinco meses. Mas a pergunta que se impõe é se, em Portugal, também houve essa adesão ao movimento e se, mesmo depois deste tempo todo, ainda existe o boicote a produtos da Hasbro. A maior parte dos apoiantes do movimento #OpenDnD ficou restrita aos países de língua oficial inglesa, mas existem jogadores em todo o mundo, incluindo Portugal.

André Corga, um dos donos da rede Versus Gamecenter, lojas especializadas neste tipo de jogos, com grande ênfase em D&D, nega que se tenha registado um possível decréscimo na compra de produtos da WoTC: “Está cada vez mais mainstream o simples jogar jogos de RPG, Dungeons and Dragons. Por consequência, é sempre o maior. Por isso, não posso dizer que tenha notado um decréscimo”. E acrescenta ainda que soube da polémica, tanto a nível profissional como pessoal, sendo ele também um jogador. André Corga descarta ainda a hipótese de a polémica ter gerado um aumento de vendas dos produtos da concorrência, como a Pathfinder, por exemplo. “Comparando com D&D, as vendas de produtos da concorrência eram muito inferiores”, assegura.

Embora quase tenha passado despercebido em Portugal, quando comparado com a dimensão que o caso assumiu nos Estados Unidos e em Inglaterra, não é errado dizer que todo este processo parece a prova que a união faz a força. Um grupo de fãs, uma comunidade inteira com mais de 50 milhões de pessoas a ter jogado até à data, conseguiu salvar a forma de jogar que une 50 milhões de pessoas.

 

Por Nuno Gil Ferreira, aluno da licenciatura em Jornalismo da Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa.

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