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Presidente da África do Sul responde a carta aberta de Mia Couto

(Imagens: Reprodução TIM)

 

Na sequência dos violentos ataques contra imigrantes, que aconteceram na África do Sul, motivados pelo discurso do Rei dos Zulus, o escritor moçambicano Mia Couto escreveu uma carta aberta a Jacob Zuma, Presidente do país, dando conta da sua apreensão com os eventos e pedindo ao estadista que se empenhasse pessoalmente, de forma a pôr-lhes fim, o mais rapidamente possível.

Agora, foi a vez do Presidente Jacob Zuma responder ao autor, na carta aberta que transcrevemos em seguida.

 

“Meu caro irmão, estou muito feliz por ter notícias tuas passado todo este tempo. É uma pena que a nossa reaproximação se dê á luz de circunstâncias tão tristes e dolorosas, aquelas que te levaram a escrever-me uma carta aberta.

Lembro-me dos nossos dias em Moçambique, quando trabalhavas na Agência de Informação de Moçambique e quando foste editor da Tempo e mais tarde do Notícias.

 

Não esqueço a amizade que Moçambique teve para comigo e com os meus camaradas. Na altura, Moçambique tornou-se a minha segunda casa e continua a ser a minha casa.

 

Tu sofres, como a tua carta mostra, por causa da morte de moçambicanos e pelos ataques a imigrantes, em algumas partes do meu país.

 

Os sul-africanos também sofrem com a tragédia e as mortes arbitrárias de sete pessoas nas semanas que passaram. Três sul-africanos e quatro estrangeiros. Que as suas almas descansem em paz e que as suas mortes trágicas nos unam na procura da paz e na demanda pelo fim da violência.

 

Os relatórios que recebemos indicam que os ataques das últimas semanas em Durban, foram despoletados pela conduta de um empregador que despediu trabalhadores sul-africanos, envolvidos numa greve, e contratou trabalhadores estrangeiros, para ocupar os seus postos de trabalho. No contexto sul-africano, o recurso a fura-greves provoca reações inflamadas, por partes dos trabalhadores em greve. Juntamo-nos ao apelo dos sindicatos nacionais, pedindo aos empregadores que abdiquem deste comportamento que instiga trabalhadores a guerrear outros trabalhadores. Os ataques de janeiro no Soweto foram instigados pelo assassinato de um jovem, por um imigrante dono de uma loja.

Está a ser um período difícil para o nosso país e o nosso povo. Milhões de sul-africanos amantes da paz sofrem ao serem catalogados de xenófobos, o que não é verdade. Definitivamente, os sul-africanos não são xenófobos.

 

As ações de uma pequena minoria não podem ser usadas para, erradamente, estereotipar mais de 50 milhões de pessoas.

 

Desde 1994, que trabalhamos incessantemente para reconstruir o país e reverter o legado deixado pelo apartheid colonialista. Fizemos progressos na construção de uma sociedade baseada no respeito pela Vida Humana, dos Direitos Humanos, na Igualdade e na Dignidade Humana. Continuamos a tentar construir uma sociedade livre de qualquer forma de discriminação. Fazemo-lo porque conhecemos na primeira pessoa a dor causada pela discriminação com base na cor, na língua ou na nacionalidade.

Relembraste-me a hospitalidade e generosidade que me foi concedida pelos moçambicanos, durante o meu exílio no vosso belo país. Concordamos que beneficiámos imenso da solidariedade internacional durante a nossa luta contra o apartheid. Os nossos irmãos e irmãs no continente africano, em particular, partilharem connosco os seus magros recursos. Muitos foram mortos por apoiar a nossa causa. O raide de Matola, no teu belo país, é um exemplo disso. É por esta razão que acolhemos os nossos irmãos e irmãs africanas que emigram legalmente para a África do Sul. Na verdade, temos uma política de emigração avançada que integra refugiados e dá asilo a quem o procura, junto das nossas comunidades. Vivem entre os nossos cidadãos e são parte de nós.

 

Somos o mesmo povo, como disse o Presidente Samora Machel depois do infeliz raide de Matola, no qual vários moçambicanos foram mortos por forças de segurança do apartheid.

 

Não só os moçambicanos e os sul-africanos, mas também a FRELIMO e o ANC têm laços emocionais que remontam a tempo longínquos. Esses laços foram criados pelas nossas vivências e lutas comuns. Apesar da vulnerabilidade de Moçambique aos ataques das forças do apartheid, o povo moçambicano demonstrou uma vontade inabalável em ajudar os combatentes do MK (n.d.r.: Umkhonto Wesizwe – em português “A Lança da Nação Zulu”, o braço armado do ANC) e do ANC, para que atravessassem o país e entrassem clandestinamente na África do Sul, para fazer a guerrilha.

 

Construímos juntos os nossos movimentos de luta contra o colonialismo. Partilhámos acampamentos na Tanzânia. Guerrilheiros do MK, lutaram lado a lado com combatentes do MPLA e com soldados cubanos, na luta pela independência de Angola.

 

A nação sul-africana não mudou e não esqueceu tamanha camaradagem e solidariedade, mas, como todos os países que emergem de conflitos armados, temos enormes desafios pela frente.

Apreciamos o contributo das nações estrangeiras. Contribuem para o desenvolvimento da nossa economia, trazem know-how essencial ao mercado e acrescentam uma diversidade cultural à nossa sociedade, da qual nos orgulhamos. Mas também há problemas e queixas dos nossos cidadãos que temos de ter em conta, tal como o número crescente de imigrantes ilegais e sem documentos, a deslocalização de várias áreas de produção para outros países e a constância de certas situações de ilegalidade.

 

Há acusações de que os estrangeiros cometem crimes, tais como tráfico de droga e o tráfico de pessoas, que diminuem a empregabilidade e as condições de trabalho dos sul-africanos ao aceitarem salários mais baixos que os praticados no país e que usufruem de uma política de habitação demasiado vantajosa, por parte do governo sul-africano.

 

Enfatizamos que nenhuma destas acusações justificam qualquer forma de violência e que esta nunca será tolerada pelo governo sul-africano. Também reconhecemos que nem todos os imigrantes estão no país de forma ilegal e/ou envolvidos em atividades criminosas.

Os lamentos do povo sul-africano têm de ser analisados à luz dos problemas de refugiados, asilados e imigrantes em buscas de melhores condições de vida, quer sejam provenientes do continente africano ou de qualquer outro. Temos um longo caminho pela frente na procura de boas soluções de longo-prazo. Já estamos a olhar para lá dos incidentes das últimas semanas. Nomeei um comité interministerial composto por 14 ministros para pensar o problema da imigração como um todo. Uma análise dos vários setores da sociedade ajudar-nos-á a perceber melhor quais as causas socioeconómicas por trás da tensão entre cidadãos sul-africanos e os seus irmãos e irmãs africanos, e de países como o Bangladesh ou o Paquistão, e evitar outra escalada de violência. Já auscultámos responsáveis de vários ramos da sociedade como Negócios, Trabalho, Desporto, Religião, Juventude, Direitos das mulheres e das crianças e muitos outros. Também estamos a consultar organizações que representam os imigrantes aqui residentes, em busca de soluções comuns. Ministros, e outros membros do executivo, encontram-se espalhados pelo país a falar à população.

 

No curto prazo, melhoraremos a implementação das políticas de emigração existentes, incluindo controlos mais meticulosos nos portos e fronteiras de entrada no país, bem como a proteção da população estrangeira de criminosos que se estão a aproveitar da tensão socioeconómica que o país vive. Já começaram os trabalhos para rever a política nacional de emigração, baseados nas nossas experiências recentes.

 

O nosso governo vai suportar-se na cooperação com os países irmãos do continente africando, do qual provêm a maior parte dos nossos imigrantes, em busca de soluções.

Agradecemos profundamente as palavras de apoio da União Africana e das Nações Unidas.

 

O que nos dá força é que trabalhamos com total apoio da nossa população amante da paz. Há marchas pela paz e pela amizade que estão a ser organizadas um pouco por todo o país, e o país orgulha-se disso. Essa é a África do Sul que condena o ódio, a violência, o racismo, a xenofobia e todo o tipo de intolerâncias.

 

Convido-te a juntares-te a nós, meu querido irmão, no nosso caminho para superar a raiva e a dor e promover a sustentabilidade e a inclusão, bem como a paz e a amizade em toda a África.

Com grande estima,

Presidente Jacob Zuma

Tshwane, África do Sul”.

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