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Bacalhau: a história do peixe-rei da mesa portuguesa

Época natalícia é sinónimo de tradição gastronómica. Provavelmente, se pedir a um português para caracterizar o Natal em poucas palavras, a referência ao bacalhau será feita. É sobre este produto que as nossas atenções recairão; o peixe-rei da mesa lusitana e a figura assídua nas receitas nacionais.

 

Garantimos-lhe que existem poucos ingredientes tão nacionais quanto a bela e alta posta de bacalhau salgada, capaz de fazer as delícias dos estômagos mais exigentes. Apesar deste produto ter protagonismo e ser consumido o ano inteiro, ganha um destaque especial durante o mês de dezembro, transformando-se no convidado basilar da  consoada de Natal portuguesa. Durante esta época, o bacalhau banha-se em azeite e apimenta o outfit com o sabor a alho; faz-se acompanhar pelo ovo e pela batata cozida, descansando sobre uma bela cama de legumes. Apelidá-lo de peixe-rei é quase simbólico, uma vez que ajuda a traduzir, por miúdos, o sabor da cozinha lusitana.

 

Apresentação da ceia natalícia lusitana – Imagem: Flickr

A fama do bacalhau já se espalhou por todo o globo. Os ingleses apelidam-no de codfish; já os italianos chamam-lhe baccalàos dinamarqueses e os noruegueses apelidam-no de torsk; e, entre os espanhóis, o seu nome é bacalaoÉ um produto cobiçado mundialmente e os portugueses são o povo que mais o consomem. Segundo os dados do Conselho Norueguês das Pescas (Norges), Portugal consumiu cerca de 33.596 toneladas de bacalhau até outubro (2017) e aproximadamente um milhão de quilogramas no mês de dezembro (2017). Os índices de popularidade do “rei dos mares” são tão altos no território lusitano que, em qualquer supermercado ou mercado local, existem refeições pré-cozinhadas de bacalhau à venda.

 

Este produto foi introduzido no regime alimentar pelos portugueses, mas a sua captura não era feita exclusivamente por este povo. Desta forma, para conseguirmos fazê-lo sorver toda a história do bacalhau e partilharmos o que de mais saboroso esta espécie marítima tem para oferecer, aconselhamos-lhe que arranje uma posição confortável e vá apreciando, enquanto lê, toda a trajetória da herança bacalhoeira de Portugal.

 

O primeiro contacto com o bacalhau

Segundo os registos históricos, corria o século XV quando os portugueses decidiram encontrar o caminho marítimo para Índia por Oeste, acabando por ancorar num local apelidado de Terra Nova – que hoje pertence à província Terra Nova e Labrador, no Canadá. Foi neste ponto do globo que a pesca do bacalhau, nas águas frias e profundas do Atlântico Norte, foi iniciada. No entanto, a captura deste produto já antecedia o século XV.

 

Os povos do Norte da Europa já tinham estabelecido redes de comércio de algumas espécies de bacalhau, nomeadamente em países como a Noruega e a Islândia. Os vikings – exploradores, comerciantes e piratas nórdicos que invadiram, exploraram e colonizaram grandes áreas da Europa e das ilhas do Atlântico Norte, a partir do final do século VIII até, essencialmente, ao século XI – são considerados os pioneiros na descoberta do bacalhau do Atlântico (cod gadus morhua). Como estes povos não tinham sal, secavam o peixe ao ar livre, prolongando a sua validade, e consumiam-no durante as longas viagens marítimas.

 

O bacalhau não era (e não é) um peixe que abundava na costa portuguesa. Desta forma, aquando da descoberta, por acaso, da Terra Nova, o povo lusitano decidiu investir na pesca deste produto. No entanto, a captura marítima não correu conforme o esperado. Durante o século XV, os portugueses deram início à Era dos Descobrimentos e as embarcações, que estavam a ser utilizadas para a pesca de bacalhau, eram necessárias para a concretização da descoberta das rotas comerciais e de novos países. “Que solução arranjar?”, questionavam-se os portugueses; “investir nos ingleses”, era a resposta. Consequentemente, os acordos políticos e mercantis começaram a ser estabelecidos com a imponente Inglaterra.

 

As trocas comerciais entre Inglaterra e Portugal

Portugal e Inglaterra, em pleno século XIV, estabeleceram um precioso acordo. Corria o ano de 1386 quando o Tratado de Windsor foi assinado por estas duas nações europeias, consolidando uma estreita aliança política, militar e comercial.

 

Segundo o historiador Joel Cleto, foi graças ao mercador português Afonso Martins Alho que o bacalhau chegou ao porto do país. Este endinheirado comerciante era uma pessoa letrada e influente em Portugal e tinha uma especial afinidade com a língua inglesa. Consequentemente, em nome do rei português, assinou, com Eduardo III (rei de Inglaterra), o primeiro tratado de comércio e pesca entre estes dois países.

 

Numa altura em que o aclamado vinho do Porto começava a ganhar destaque, os ingleses, uma das nacionalidades que mais apreciava (e aprecia) este elixir, oriundo do Douro português, tinham todo o interesse em chegar a um consenso comercial com os lusitanos. Claro está que a moeda de troca seriam alguns barris de vinho. Graças à capacidade de negociação de Afonso Martins Alho, a rota do vinho do Porto foi expandida pelos ingleses – que o popularizaram pelo mundo inteiro – e o bacalhau em salga foi introduzido na alimentação dos portugueses.

 

Ainda de acordo com o historiador português, devido à sagacidade e à grande habilidade de Afonso Martins Alho como negociador, a partir de certa altura, começou a empregar-se a expressão “fino que nem um alho” – que significa que certa pessoa é muito sagaz, esperta e astuciosa. Consequentemente, Martins Alho viu o seu nome ficar eternizado na cultura linguística popular e numa rua portuense (norte de Portugal): a Rua Afonso Martins Alho.

 

A aliança de 1386 é considera a mais antiga do mundo e, ainda, continua em vigor.

 

Oficialização do Tratado de Windsor, entre Portugal e Inglaterra, que culminou no casamento real entre D. João I (Portugal) e Filipa de Lencaster (Inglaterra) – Imagem: Wikimedia Commons

A introdução do bacalhau no Natal português

Portugal foi e continua a ser um país profundamente religioso. A maioria da população é católica praticante e os laços estabelecidos com o Clero, ao longo dos anos, continuam visíveis até aos dias de hoje. Basta parar e observar a quantidade de igrejas e capelas que existem, espalhadas por qualquer cidade, vila ou aldeia, e que ajudam a caracterizar a arquitetura portuguesa.

 

A cidade do Porto, fixada no coração nortenho de Portugal, foi um dos centros urbanos que mais sentiu a influência do Clero. É apelidada de “Invicta”, porque se demonstrou pouco flexível à monarquia e nunca caiu perante as tentativas de conquista de território, protagonizadas por outros povos. Manteve-se sempre leal aos portugueses e foi o palco escolhido para a construção das embarcações que partiram rumo aos DescobrimentosDevido ao seu porto marítimo, as trocas comerciais eram realizadas aqui. Chegavam ao Porto o bacalhau e o sal de Inglaterra e, por sua vez, o vinho que lhe toma o nome era exportado, deste ponto, para Inglaterra. Graças a este facto, a presença do bacalhau nos pratos gastronómicos desta região é inegável. Esta cidade foi a incubadora de muitas das receitas que destacam o peixe-rei da mesa portuguesa. Bacalhau à Braga; Bacalhau com Todos; Bacalhau à Zé do Pipo; Bacalhau com Broa; etcsão apenas alguns exemplos.

Apresentação do famoso Bacalhau com Broa; além do bacalhau demolhado, esta receita leva broa, alho, sal, azeite, batata, cebola, ovos, azeitonas e, em alguns casos, coentros – Imagem: Flickr

 

Apresentação do famoso Bacalhau com Todos; esta receita leva grão de bico, ovos, cenoura, batata, alho, cebola, bacalhau, couve portuguesa, sal, pimenta, azeite e vinagre  – Imagem: Nicolas Lemonnier

 

Apresentação do famoso Bacalhau à Braga; esta receita leva bacalhau, pimentos verde e vermelho, louro, batatas, pimenta moída, tomate, alho, cebola, vinagre, sal e azeite – Imagem: Flickr

 

Apresentação do famoso Bacalhau à Zé do Pipo; esta receita leva batata, cebola, alho, azeite, maionese, leite, noz-moscada, salsa picada, azeitonas, bacalhau, pimentos, sal, pimenta e farinha – Imagem: Teleculinária

Ao longo do tempo, a introdução do bacalhau no assinalamento de épocas festivas passou a ser regra. Na região norte de Portugal, a familiaridade com este produto era maior. Desta forma, não é de estranhar que, neste pedaço de território, existam mais ocasiões onde o bacalhau é o protagonista; o Natal é apenas uma delas.

 

Durante a Idade Média, os portugueses jejuavam as carnes: abstinência imposta pela Igreja. Ao longo de 132 dias por ano, a população deveria trocar as carnes e substituí-las por outros ingredientes. Como a maioria das pessoas era pobre, a aceitação destas imposições eclesiásticas eram acatadas. Durante o tempo invernoso, as pequenas embarcações portuguesas não tinham condições para abastecer os mercados com pescado fresco. Desta forma, o bacalhau revelava-se uma solução fácil e barata para a época. Uma vez que este era conservado em sal pelos portugueses, depois de seco, não era considerado um produto perecível.

 

O jejum lusitano não era só quaresmal – período do ano litúrgico que antecede a Páscoa cristã (40 dias). Além desta data, durante os dias que antecediam o Natal – nascimento de Jesus Cristo -, deixavam-se as carnes de lado e voltava-se a investir no peixe. Assim, abre-se espaço no regime alimentar e o costume de se comer bacalhau, durante a quadra natalícia, nasce, prolongando-se até hoje.

 

O norte do país mantém a tradição de consumir bacalhau no Natal, visto que este produto chegava primeiro a esta região; a comercialização para outras localidades era mais demorada. Por Portugal fora, vão existindo algumas variâncias do elemento de destaque da consoada. Há quem coma polvo, mais a sul, caras de bacalhau – em vez de postas -, na região mais central, e há ainda quem opte pelo frango recheado. No entanto, não há português que resista a um belo prato de bacalhau, independentemente da ocasião. É o peixe que ajuda a sintetizar o ADN do país, perpetuando a história da cultura e das tradições nacionais.

 

Se outrora o bacalhau era visto como um ingrediente barato e depreciativo, nos dias que correm é considerado o monarca poderoso da identidade gastronómica portuguesa. É o rei do prato e, em quase todas as suas versões, é adornado com uma coroa de azeitonas ou com uma crosta de alho e cebola, ambas cravadas com pedras preciosas que enriquecem o palato e afagam o estômago.

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