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Um ecossistema ameaçado

A Ria Formosa, uma das 7 maravilhas naturais de Portugal, e a exuberante biodiversidade que acolhe pode estar, alertam os investigadores, em perigo. Os últimos estudos provam que o aumento da presença humana está a ameaçar este império natural, onde, em 2001, foi identificada a maior comunidade de cavalos-marinhos do mundo

 

As muralhas de areia que separam o agitado oceano Atlântico da ria, os sapais esverdeados esculpidos pelos cursos de água cristalina e as pradarias marinhas transformam a Ria Formosa num tesouro de biodiversidade. Situada na costa Algarvia, o Parque Natural da Ria Formosa é considerado a zona húmida mais importante a sul de Portugal. Ao longo de 60 quilómetros, estende-se entre as penínsulas do Ancão e de Cacela Velha, ocupando uma área de 18.400 hectares. Apesar de apresentar uma biodiversidade singular, vários investigadores alertam que essa riqueza ecológica se encontra ameaçada. Jorge Palma, biólogo no Centro de Ciências do Mar (CCMAR), da Universidade do Algarve, avisa que está em causa “um porto de abrigo onde as inúmeras espécies encontram uma grande abundância de alimento, bem um refúgio ideal para nidificar e se reproduzir”.

O aumento da presença humana e a consequente azáfama provocada pelo tráfego marítimo têm causado, adverte, “impactos negativos e constituem um entrave à preservação e conservação tanto do sistema lagunar, como da fauna e flora desta zona”. Entre as espécies ameaçadas está o cavalo-marinho, naquele que já foi o maior berço mundial desta espécie.

 

O negócio dos viveiros de ostras

Durante a baixa-mar, que acontece a cada doze horas alternadamente com a preia-mar, enterrados até ao joelho no lodo, debruçados sobre as pernas, os mariscadores concentram a atenção na procura de amêijoa e lingueirão. O marisco faz parte da cultura gastronómica da Ria Formosa, sendo um dos tesouros ecológicos e económicos do Algarve. Do outro lado do canal, sacos rendilhados cheios de ostras, que pendem verticalmente de uma estrutura metálica, estão a apanhar sol.

José António Lopes, natural da ilha da Culatra, é dono de um dos primeiros viveiros de ostras da região. “Foi uma atividade que surgiu na Ria Formosa há cerca de 20 anos. Nessa altura, éramos apenas meia dúzia, agora somos muitos”, afirma. Através de um estudo realizado, em 2015, pela Associação para o Estudo e Conservação do Oceano (AECO), é possível comprovar o aumento exponencial dos viveiros de ostras e amêijoas no Parque Natural. No ano em que foi elaborado, o estudo evidenciou o registo de 963 viveiros de ostras e amêijoas na Ria Formosa.

O crescimento desta atividade e o seu sucesso na Ria Formosa devem-se ao facto de o Parque Natural oferecer condições excelentes. Desde a água amena e rica em nutrientes, renovada a cada maré, até à presença regular do sol Algarvio, a Ria é o lugar ideal para o desenvolvimento de espécies como a ostra gigante (Crassostrea gigas).

Segundo José António Lopes, “a produção de espécies de grande valor económico, como é o caso da ostra gigante, não tem grande representação na economia local”. Trata-se de uma atividade importada, em que as larvas de ostra, produzidas em centros de reprodução franceses, são trazidas para crescer na Ria Formosa devido às condições ideais da zona para o seu desenvolvimento. “99% daquilo que produzo é importado para França”, revela.

Hoje em dia, ao navegar pelos canais da Ria é impossível não reparar nos viveiros que ocupam as margens. No Porto de Abrigo da vila da Culatra, vê-se de perto o trabalho árduo dos pescadores fora dos viveiros. Zé António, rodeado de sacos rendilhados vazios, empilhados uns em cima dos outros, limpa-os para depois serem reutilizados. No barco ao lado, dois viveiristas separam as ostras tendo em conta o seu tamanho. “É um trabalho duro que se faz de sol a sol”, afirma. Esta atividade económica passou progressivamente a integrar a cultura da Ria Formosa e o seu ecossistema. Os impactos ambientais e ecológicos que esta atividade possa ter na biodiversidade local ainda não foram avaliados, muito menos alterações que poderão ter ocorrido.

Mais conhecido na Culatra como Toninho, este homem da Ria afirma, com orgulho, ser “filho da ilha”. Há 62 anos que ali vive. Desde que nasceu que diz ter visto a Ria Formosa mudar perante os seus olhos. “Nessa altura, os turistas contavam-se pelos dedos das mãos. Hoje em dia, já não é possível.” Para o pescador, é evidente o aumento do tráfego marítimo e do investimento turístico que houve na zona, apesar de considerar que a azáfama dos visitantes não constitui um entrave à atividade que pratica. Nostálgico, José António Lopes lembra a Ria serena e intocável que admirava quando era criança: “Tudo mudou.”

 

Comunidade de cavalos-marinhos em risco

Em 2001, Janelle Curtis, investigadora canadiana que integra o Seahorse, projeto criado em 1996 e que é hoje líder da conservação marinha, encontrou a maior comunidade de cavalos-marinhos do mundo, nas águas calmas da Ria Formosa. Camuflados por entre as algas esverdeadas das pradarias marinhas, agarrados às algas verdes com a sua cauda preênsil, praticamente imóveis, viviam cerca de 2 milhões de animais. “Quase impercetível a olho nu, devido à sua capacidade de se camuflar, o cavalo-marinho encontra, nas pradarias marinhas da Ria Formosa, o lugar ideal para viver”, refere o investigador Jorge Palma.

As duas espécies de cavalos-marinhos autóctones do Parque Natural – Hippocampus hippocampus (focinho curto) e Hippocampus guttulatus (focinho longo) – desde o início do século que têm enfrentado inúmeros desafios, desde a pesca ilegal até ao aumento da presença humana na Ria Formosa. De acordo com um estudo realizado, em 2008, por Iain Caldwell, investigador na Universidade James Cook, na Austrália, a população de cavalos-marinhos caiu cerca de 90% em menos de uma década. “Iain verificou um decréscimo de 73% na comunidade de Hippocampus hippocampus e de 94% para a população de Hippocampus guttulatus”, afirma o investigador do CCMAR. Nessa altura, questionou-se o que estaria na origem desse decréscimo acentuado da população de cavalos-marinhos da Ria Formosa. Como hipótese principal, surgiu a degradação ambiental.

A técnica de pesca por arrasto foi entretanto identificada como uma das principais causas para o declínio da população de cavalos-marinhos, no Parque Natural da Ria Formosa. “A pesca ilegal é algo que sempre existiu na Ria e que continua a existir”, constata Jorge Palma. Esta técnica de pesca – alerta – “além de capturar cavalos-marinhos, também tem um efeito destruidor no solo marinho, isto é, nas pradarias marinhas”. O investigador sublinha que “a destruição de grande parte destes habitats é uma das questões mais preocupantes pelo facto de os cavalos-marinhos serem peixes sensíveis e, por isso, bastante exigentes no que toca ao seu habitat”.

O biólogo também destaca a presença humana e o consequente ruído como sendo algo que afeta os cavalos-marinhos. “Ficam em stress. No verão, que é simultaneamente a época de acasalamento e de maior azáfama na Ria, a espécie acaba por não se reproduzir como poderia”, lamenta. Apesar das adversidades que os cavalos-marinhos enfrentam na Ria Formosa e de ter havido um decréscimo acentuado da população no início do século, Jorge Palma defende que a comunidade de cavalos-marinhos que habita o Parque Natural “continua a ser muito importante para a distribuição desta espécie a nível mundial.”

 

Imagem Freepik
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Conservar e preservar

O Centro de Ciências do Mar (CCMAR), da Universidade do Algarve, tem desenvolvido várias iniciativas de preservação e conservação da espécie, numa luta da ciência contra o tempo e contra a mão humana. Entre os projetos mais recentes e que mais frutos alcançou, está o Hipposafe, um plano de ação que visou recuperar as populações de cavalos-marinhos da Ria Formosa. Como esclarece o biólogo e coordenador, “tinha como objetivo avaliar o estado das populações de cavalos-marinhos, implementar estruturas artificiais como medida de enriquecimento dos habitats degradados e ainda produzir cavalos-marinhos em cativeiro para repovoamento em áreas protegidas”.

Com o apoio do grupo de salvaguarda para a conservação dos cavalos-marinhos, constituído por instituições como o ICNF (Instituto de Conservação da Natureza e Florestas), o IPMA (Instituto do Mar e da Atmosfera) e a APA (Agência Portuguesa do Ambiente), foram ainda criadas zonas de santuário e de proteção para os cavalos-marinhos. Numa viagem de barco pelos canais da Ria avistamos agora, a romper com a paisagem natural, placas amarelas que assinalam zonas interditas a qualquer atividade marítima. “Estas ferramentas, como a criação de zonas de proteção para a espécie, funcionam por si só. Um ano após a criação das zonas de santuário, no âmbito do projeto Hipposafe, registámos cem vezes mais cavalos-marinhos dentro desses locais, quando comparamos com zonas não protegidas”, indica o biólogo.

O Ramalhete, centro de investigação da Universidade do Algarve, que se situa em pleno Parque Natural da Ria Formosa, é um local de investigação onde é realizada a criação de cavalos-marinhos. Os animais crescem, sob o olhar atento dos investigadores, em tanques transparentes cheios de água. Gervásio é um dos cavalos-marinhos que, após ter crescido nos aquários artificiais da estação de investigação, foi libertado numa pradaria marinha da Ria Formosa. Mais tarde, durante o acompanhamento da integração dos cavalos-marinhos no habitat natural, Jorge Palma diz ter encontrado o mesmo cavalo-marinho. “De acordo com as manchas no seu dorso, que são únicas e por isso equivalentes às nossas impressões digitais, consegui encontrar o Gervásio perto do sítio onde o tínhamos libertado”, revela. A reprodução da espécie em cativeiro constitui uma parte fulcral para o trabalho de preservação e conservação: “Em 2022 e agora em 2023, temos visto um aumento dos cavalos-marinhos na Ria Formosa. Em dois anos, conseguimos recuperar 30% da queda na população desta espécie, tendo em conta as estimativas realizadas em 2008.”

Para Jorge Palma, o facto de a Ria Formosa ser um sistema extremamente dinâmico que continua a ter um grande impacto humano limita bastante a conservação das espécies. A ciência avança empreendendo esforços para travar uma luta desigual. O mote é nunca desistir, mas as perspetivas não são as mais animadoras: “De uma forma otimista, espero que a comunidade de cavalos-marinhos possa recuperar a mesma expressão que tinha em 2001. Realisticamente, duvido que isso irá acontecer.”

 

Mitos que comprometem a espécie

O nevoeiro de misticidade que, desde a Grécia Antiga, paira sobre os cavalos-marinhos faz com que, atualmente, a espécie esteja comprometida. Na medicina chinesa, acredita-se que o consumo de pó produzido a partir de cavalos-marinhos secos poderá surtir efeito curativo em doenças como o cancro do cólon e a disfunção sexual masculina. É estimado que, todos os anos, cerca de 37 milhões de cavalos-marinhos sejam capturados. Apesar de alguns países asiáticos terem imposto leis que proíbem a importação de cavalos-marinhos, a venda de animais no mercado negro continua a ter uma expressão significativa – cada quilo de cavalos-marinhos secos, o que corresponde a cerca de 300 animais, equivale a cerca de quatro mil euros no mercado asiático.

Espalhadas pelo mundo, existem 46 espécies distintas de cavalos-marinhos que habitam zonas costeiras de baixa profundidade, com preferência por zonas mais protegidas, como por exemplo estuários e zonas de coral. Estes peixes ósseos são representativos do seu ecossistema e, por isso, apresentam características morfológicas distintas tendo em conta o habitat onde vivem. Camuflados de acordo com o ambiente que os envolve, os cavalos-marinhos são extremamente difíceis de encontrar.

O método de reprodução destes animais também constitui uma característica diferenciadora da espécie. De modo a chamar a atenção do parceiro, os cavalos-marinhos, durante a época de acasalamento, mudam de cor. Numa dança diligente, de cauda entrelaçada, a fêmea passa para a bolsa do macho centenas de óvulos para que este os fecunde. Esta singular reprodução, enm que o macho está encarregue da fecundação e do desenvolvimento dos ovos, é a forma de duplicar a fecundidade da espécie. A fémea fica então livre para produzir mais óvulos e poder acasalar com o mesmo parceiro, ou com um diferente.

Fonte: “Seahorse (Hippocampinae) population fluctuations in the Ria Formosa Lagoon”, de M. Correia, M.Caldwell, I.Koldewey, H. Andrade, J. Palma – artigo publicado no Journal of Fish Biology, da África do Sul, em 2016.

 

Cavalgar para a extinção

Em defesa dos cavalos-marinhos da Ria Formosa, em 2019, foi lançada, entre outras ações de sensibilização ecológica, a campanha “Cavalgar para a extinção”. Praticamente ignorada com a pandemia, a iniciativa lançava o apelo para prestar atenção a três comportamentos específicos com o objetivo de preservar e conservar os cavalos-marinhos da Ria Formosa:

1º Não apanhar e tocar nos cavalos-marinhos.

2º Fundear barcos com precaução, de forma a evitar zonas de pradaria marinha.

3º Evitar fazer ruído com as embarcações fora dos canais de navegação.

Fontes: Jorge Palma, investigador do Centro de Ciências do Mar (CCMAR).

 

Por Raquel Gonçalves e Marta Nobre, alunas da licenciatura em Jornalismo da Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa.

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