Afinal, o que é a apropriação cultural?
5 minApropriação cultural é um tema que levanta dúvidas, sendo que nem todos/as julgam que se trata de uma questão importante. Independentemente disso, é sempre relevante perceber o que significam os termos que fazem eco na sociedade atual. Só através desse conhecimento é que as opiniões se podem formar devidamente.
Então, o que é, afinal, a apropriação cultural? Como é que alguém pode “roubar” cultura? O assunto não se fica pela escolha de uma mulher branca usar uma capulana, ou de um homem branco chamar “afro” ao seu penteado volumoso. A apropriação cultural é, na verdade, uma crítica dirigida ao poder instituído. Esta acontece quando algum ou alguns elementos de culturas não dominantes ganham um estatuto mainstream ou exótico, muitas vezes motivado por fins lucrativos. Daí que a liberdade individual, para usar seja o que for (roupas, vocabulário, etc.), não é ameaçada pelo conceito.
Esse processo não tem apenas o lado financeiro. Ou seja, a criação pouco ética e consciente de lucro não é a única consequência. Do ponto de vista social e cultural, levantam-se outros problemas. Vejamos: se certos elementos culturais, originados por povos que são marginalizados, são usados numa representação feita por outra cultura, sendo esta a dominante, passa a existir uma nova forma de marginalização. Podemos dizer que é uma segunda camada de discriminação, colocada por cima daquela que já está instituída, validando-a.
De certa forma, os elementos dos quais a cultura dominante se apropria tornam-se sinónimos de exotização. Sendo assim, não existe a naturalização do que é do outro, só porque não é nosso. Ora, não sendo nosso, só pode ser “exótico” — o que é um rótulo absurdo e, lá está, segregador e marginalizante. Da mesma maneira, as pessoas que integram essa cultura “exótica” são, também elas, continuamente discriminadas e marginalizadas.
Acusações de apropriação cultural nos média
A verdade é que as raízes de muitas das coisas que estão implementadas na sociedade ocidental e dominante vieram de povos que foram colonizados e marginalizados. Há influências históricas que vão desde a música ao vestuário, passando pela comida e vocabulário. Isso não significa que tudo deva ser policiado ou abandonado, porque corremos o risco de entrar no mundo do “politicamente correto”, sem nunca mais conseguir sair.
Nesses casos, a lógica é bem diferente, porque há todo um panorama cronológico e histórico que o justifica. Aliás, podemos considerar que esse é, antes, um processo de naturalização da cultura não dominante. No entanto, não deixa de ser crucial saber de onde vêm e quem foram os percursores dos movimentos que seguimos ou admiramos. Mais do que isso, saber o porquê da “nossa” cultura ser aquilo que é, nomeadamente quais são as suas influências. A título de exemplo, basta relembrar o samba e a capoeira. Têm raízes africanas, mas são praticadas por muito do povo brasileiro, independentemente da sua etnia. Portanto, assimilação cultural é diferente de apropriação cultural, tal como o intercâmbio cultural.
Talvez alguns exemplos mais ilustrativos possam ajudar a compreender melhor o que é a apropriação cultural. Porque, sim, ela existe e, muitas vezes, pode ser absolutamente flagrante. Quando assim é, trata-se de um desrespeito gigantesco e de um exercício de enorme marginalização, que de alguma maneira prejudica ou desconsidera a “fonte”.
A estilista francesa Isabel Marant foi acusada de apropriação cultural num caso de flagrante aproveitamento. Na sua coleção de verão 2015, apresentou peças idênticas aos bordados da comunidade indígena mexicana Sant-Maria Tlahuitoltepec (na província de Oaxaca). Esse tipo de vestuário secular é um símbolo da identidade da comunidade. A marca de Marant produziu-o em larga escala, catalogando-o como “tribal”. Cada peça custava cerca de 250 euros (1100 reais); no entanto, de acordo com o The Guardian, quando vendidas pelas mulheres da comunidade mexicana que originalmente as cria, o preço ronda os 15 euros (65 reais).
Este é um episódio muito relevante para o entendimento deste tipo de críticas. De facto, e de maneira muito clara, a estilista francesa prejudicou a comunidade em questão. Não só se “inspirou” no vestuário típico deste coletivo, como o fez para mero benefício próprio, sem qualquer serviço aos indígenas. Apropriou-se indevidamente de obras que não eram da sua autoria, gerando uma quantidade enorme de lucro, à custa do património cultural alheio.
Mais duas polémicas que juntam apropriação cultural ao mundo da moda: Victoria Secret e Marc Jacobs são os protagonistas. Em 2012, num desfile da marca estadunidense, a modelo Karlie Kross percorreu a passerelle vestida com a “grinalda” típica do povo nativo-americano. A marca foi forçada a desculpar-se publicamente, tal como fez a própria modelo. Além do lucro que este tipo de eventos gera, que, neste caso, não beneficiou de maneira nenhuma a comunidade indígena, também se levantam outras questões. A falta de representatividade da mulher nativa e uma total desconsideração pelos problemas que afetam as suas vidas nos dias atuais são duas delas. Afinal de contas, se a modelo fosse indígena, estas acusações não teriam relevância, ou nem teriam acontecido.
Marc Jacobs, por sua vez, foi alvo das mesmas acusações devido ao uso de rastas (também conhecidas como dreadlocks) na cabeça das modelos do seu desfile, em 2016. Destas manequins, nenhuma era negra, o que só elevou o debate. Sendo esse penteado uma prática étnica, típica da cultura negra, a escolha do estilista foi vista como de muito mau gosto.
Na indústria do espetáculo, particularmente na música, as alegações sobre apropriação cultural também não têm sido escassas. Selena Gomez e Taylor Swift já foram criticadas por serem pouco sensíveis à etnicidade daquilo que escolhem retratar, em algum momento das suas carreiras. Em 2013, Gomez foi acusada de se apropriar da cultura indiana durante uma performance. Isto porque a cantora se vestiu e dançou como, tipicamente, se faz na Índia. Swift, por outro lado, foi criticada devido ao clipe da sua canção “Shake It Off”. Lançado em 2014, o vídeo contém partes em que a cantora veste, dança e “age” de forma estereotipada, comummente associada à mulher negra.
Mas é preciso ter cuidado…
Ainda que existam os casos gritantes descritos acima, entre muitos outros, a verdade é que, por vezes, um certo nível de apropriação é inofensivo. Quando não há qualquer prejuízo, psicológico, moral ou financeiro, para um ou mais membros da comunidade cujos símbolos estão a ser retratados, não se deve necessariamente classificar como apropriação inadequada ou abusiva. Pode tratar-se apenas de um caso de inspiração ou de pura e simples liberdade individual. É preciso alimentar um sentido de distinção entre a apropriação cultural e a mera homenagem, influência, estética ou inspiração.
Como, também sobre esta perspetiva, é importante resgatar exemplos, deixamos alguns casos que surgiram no mundo das redes sociais e de outros média. De forma exagerada, ecoaram pelas acusações de que foram alvo, alegando que se tratavam de apropriações culturais.
Beyoncé, uma das mais reconhecidas artistas do panorama musical, famosa em praticamente todo o mundo, foi acusada de apropriar-se da cultura indiana, em 2018. Tudo porque usou um vestido que seguia a estética tradicional do país. O que falta mencionar é que a cantora vestiu aquela roupa para ir a uma celebração pré-casamento indiana, a decorrer na Índia, na qual atuou para o casal. Embora seja uma pessoa poderosa, o facto é que Beyoncé limitou-se a usar uma indumentária que respeita a tradição do país onde o evento, para o qual foi convidada por pessoas indianas, tomou lugar.
Outro caso que recebeu duras acusações por parte de utilizadores/as do Twitter foi o de Keziah Daum. Uma jovem, desconhecida da vida pública, que usou um vestido chinês no seu baile de finalistas. Portanto, uma adolescente que queria vestir-se de forma elegante e bonita para ir a um evento especial da sua vida. Pode não ter sido a decisão mais sensata, mas qual o impacto negativo desta escolha? Qual o prejuízo financeiro, psicológico ou moral para a cultura chinesa? Qual o prejuízo financeiro, psicológico ou moral para as pessoas chinesas? Será muito difícil encontrar um verdadeiro sentido de apropriação cultural num caso como este. Não envolve poder, dinheiro ou ofensa.
Também Rihanna e Katy Perry foram alvo de críticas devido às roupas que usaram na MET Gala 2018. Tal como Beyoncé, tratam-se de artistas internacionalmente famosas, o que aumenta a exposição à crítica de uma maneira avassaladora. O que é facto é que a MET Gala tem todo um conceito que envolve dois fatores fundamentais para interpretar as vestes das cantoras. Primeiro, é um evento subjugado a um tema; segundo, é uma iniciativa de angariação de fundos para o Instituto de Figurinos do Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque.
O tema dá todo o contexto sobre as escolhas que são feitas. Sendo que, em 2018, este foi “Moda e a Imaginação Católica”, subentende-se um certo grau de apropriação. Rihanna e Katy Perry foram acusadas de se apropriarem da cultura católica, bem como outras figuras que estiveram no evento. O mais absurdo, neste caso, é o facto do catolicismo ser a religião mais poderosa do mundo, cuja instituição principal está associada a vários escândalos e cujas recursos económicos são gigantescos.
Por último, um caso masculino: Justin Timberlake. Também através das redes sociais, o cantor de “Sexy Back” foi acusado de apropriação cultural, após ter publicado um elogio ao discurso que Jesse Williams fez durante os BET Awards. Depois de ouvir as palavras do ator de Anatomia de Grey — que abordou temas como a violência policial contra os negros, nos Estados Unidos da América, e o “roubo” da cultura negra —, o cantor escreveu um tweet, admitindo que se sentia “inspirado”.
O facto de Timberlake ser branco e privilegiado levou a que vários/as utilizadores/as da rede social o criticassem. Não deixa de parecer exagerado que tantas reações negativas tenham surgido, tendo em conta que o artista se limitou a escrever um breve comentário, positivo, sobre a partilha de Jesse Williams.
Estes exemplos não significam, no entanto, que as figuras mencionadas não devam nada à apropriação cultural. Aliás, Katy Perry pediu desculpa publicamente por ter, no passado, lançado materiais nos quais se apropriava de outras culturas. Segundo afirmou numa entrevista dada a Deray McKesson, ativista do movimento Black Lives Matter, Perry precisou da perspetiva de outras pessoas para perceber o valor das suas atitudes. Também Beyoncé já recebeu outras acusações de apropriação cultural em algum dos seus trabalhos.
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